O GLOBO, n 32.317, 29/01/2022. Política, p. 4
AÇÃO ‘DIRETA E CONSCIENTE’
Mariana Muniz, Aguirre Talento, André de Souza e Jussara Soares
PF acusa Bolsonaro de crime por vazar inquérito; presidente falta a depoimento ordenado por STF
Relatório da Polícia Federal (PF) sustenta que o presidente Jair Bolsonaro teve “atuação direta, voluntária e consciente” na prática do crime de violação de sigilo funcional. O documento, tornado público ontem, atribui ao presidente a responsabilidade pela divulgação de inquérito sigiloso que apurava um ataque hacker ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). A acusação da PF veio à tona no mesmo dia em que Bolsonaro se negou a cumprir decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), e não compareceu para depor na corporação. A decisão do presidente voltou a acirrar as relações entre o Palácio do Planalto e o tribunal.
Bolsonaro seria ouvido pela delegada Denisse Dias Ribeiro, a mesma que assina o relatório com acusações ao presidente. Segundo a policial, o interrogatório era a peça que faltava para concluir as investigações. Ela aponta que, além de Bolsonaro, também foram responsáveis pelo vazamento o deputado Filipe Barros (PSL-PR), que levou os documentos ao presidente, e o tenente-coronel Mauro César Barbosa Cid, ajudante de ordens de Bolsonaro, que foi indiciado.
Segundo a delegada, nem o presidente nem o deputado foram indiciados porque o STF tem entendimento de que essa é uma competência exclusiva do tribunal para pessoas com foro especial, benefício que não atinge o auxiliar indiciado.
Os documentos do inquérito foram divulgados por Bolsonaro em uma live. Segundo a delegada, “os elementos colhidos apontam para a atuação direta, voluntária e consciente” de Filipe Barros e Bolsonaro. “Na condição de funcionários públicos, revelaram conteúdo de inquérito policial que deveria permanecer em segredo até o fim das diligências, ao qual tiveram acesso em razão do cargo de deputado federal relator de uma comissão no Congresso Nacional e de presidente da República, respectivamente”, escreveu a delegada.
O relatório parcial foi enviado em novembro pela PF ao ministro Alexandre de Moraes. No documento, que estava sob sigilo até ontem, a PF pediu autorização para tomar o depoimento do presidente. Esse depoimento ocorreria ontem, mas Bolsonaro não compareceu e a Advocacia-Geral da União (AGU) recorreu ao STF para adiá-lo menos de uma hora antes do horário marcado.
DISCUSSÃO JURÍDICA
A AGU sustenta que o inquérito divulgado por Bolsonaro não estava em sigilo e pediu que o caso fosse levado ao plenário do STF. O ministro Alexandre de Moraes rejeitou o pedido da defesa de Bolsonaro. A AGU queria levar a discussão para o plenário do STF, sob o argumento de que o presidente não seria obrigado a comparecer. A informação foi antecipada pela colunista do GLOBO Bela Megale.
Moraes, ao rejeitar o pedido (um agravo regimental), considerou que o recurso foi apresentado fora do prazo. Por isso, não deve ir ao plenário. No despacho, o ministro não impôs punições ou sanções a Bolsonaro. No entanto, ao rejeitar o recurso feito pela AGU, permanece a determinação de Moraes para que o presidente preste depoimento.
A Superintendência da PF no Distrito Federal chegou a reservar uma sala para a realização do depoimento, mas investigadores já tinham expectativa de que o presidente não compareceria. Representantes da AGU chegaram ao local por volta das 13h50 para avisar que Bolsonaro não iria e informar que entraram com recurso no STF para adiar a oitiva.
Pela manhã, Bolsonaro conversou com o advogado-geral da União, Bruno Bianco, para traçar a estratégia a respeito do assunto. O entendimento da AGU é que ele não é obrigado a comparecer, por isso o órgão passou a preparar um recurso a ser apresentado ao STF para suspender o depoimento. Bolsonaro também conversou com o ministro da Justiça, Anderson Torres, que é o superior hierárquico da Polícia Federal.
Como o STF suspendeu o instrumento da condução coercitiva, que serve para obrigar um investigado a comparecer para prestar depoimento, não há uma retaliação prevista em lei para sua ausência no interrogatório. O ministro Alexandre de Moraes ainda deve analisar se há medidas a serem tomadas sobre o assunto.
Esse inquérito foi aberto para apurar a suspeita de vazamento de documentos sigilosos de uma investigação da PF a respeito de ataque hacker ao TSE. O inquérito foi aberto pelo Supremo e tramita sob relatoria de Moraes.
Juristas ouvidos pelo GLOBO explicam que, por ser investigado, e não testemunha, Bolsonaro não é obrigado a depor —prestar depoimento como investigado é um ato de defesa e, portanto, a pessoa se defende se quiser.
—O investigado tem o direito de não ir depor, o direito dele de não produzir prova contra si mesmo — aponta o advogado Fábio Tofic Simantob.
Há, entretanto, entre alguns juristas o entendimento de que, como havia uma determinação do STF para que Bolsonaro prestasse depoimento, a falta poderia ser considerada como descumprindo de uma ordem judicial. Uma hipótese que, caso seja concretizada, poderia levar, em tese, ao cometimento de crime de responsabilidade por parte do presidente.
Em documento enviado ao STF, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) pediu ao ministro Alexandre de Moraes as “medida cabíveis” para apurar criminalmente a “conduta típica, ilícita e culpável” de Bolsonaro. Randolfe destacou dois possíveis crimes cometidos por Bolsonaro ao faltar ao depoimento. Um deles é desobediência de ordem legal de funcionário público, que tem pena de 15 dias a seis meses. O outro é impedimento de decisões judiciais, que é considerado crime de responsabilidade, ou seja, pode levar à perda do cargo ou inabilitação para o exercício de função pública.
OS POSSÍVEIS DESDOBRAMENTOS DO CASO
Qual a implicação do não comparecimento do presidente Jair Bolsonaro ao depoimento na PF para a investigação criminal?
O inquérito sofre um atraso. Com a nova decisão tomada pelo ministro Alexandre de Moraes ontem, rejeitando o recurso da Advocacia-Geral da União (AGU), está mantida a necessidade de Bolsonaro prestar depoimento. Assim, a PF terá de marcar uma nova data.
Ele pode sofrer alguma punição por não ter atendido à ordem do ministro Alexandre de Moraes?
Na decisão em que negou o recurso da AGU pedindo o adiamento do depoimento,Moraes não impôs sanções a Bolsonaro.Mas ele ainda pode analisar se há medidas possíveis de tomar.Entre os juristas,há divergências.Parte avalia que,por ser investigado,e não testemunha,Bolsonaro não é obrigado a depor.Prestar depoimento como investigado é um ato de defesa e,portanto,a pessoa se defende se quiser.Outros juristas entendem que,como há uma determinação do STF,a ausência é um descumprimento de ordem judicial,o que pode levar, em tese, ao cometimento de crime de responsabilidade.Nesse caso, a sanção seria política: perda do cargo ou,eventualmente,inabilitação para exercício de cargo público e inelegibilidade.
A polícia pode buscar o presidente para obrigá-lo a prestar depoimento?
Não. Em junho de 2018 o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) manteve uma decisão do ministro Gilmar Mendes proibindo a condução coercitiva de réus e investigados.
A PF pode tocar o inquérito à revelia da defesa do presidente já que ele não quis comparecer?
A praxe é a polícia prosseguir com a investigação. No caso de Bolsonaro, porém, a própria delegada responsável pelo caso escreveu, em documento de novembro do ano passado, que o depoimento do presidente é “medida necessária” para finalizar investigação. O mais provável é que, se Bolsonaro persistir na decisão de não falar, a PF espere novo posicionamento de Moraes.
O plenário do STF pode liberar o presidente de prestar depoimento?
Em sua decisão rejeitando o pedido da AGU para adiar o depoimento, Moraes disse que o pedido foi apresentado fora do prazo. Assim, não será levado para análise do plenário do STF. Mas a AGU pode tentar outros recursos, embora sem a garantia de que eles venham a ser discutidos em plenário.