Título: O desafio de Lula
Autor: Hélio Jaguaribe Cientista político
Fonte: Jornal do Brasil, 20/02/2005, Opinião, p. A11

A derrota do governo e do PT, na eleição do presidente da Câmara, tem muitas causas imediatas, como usualmente ocorre com eventos como esse.

Já foram enumerados pela imprensa alguns dos principais motivos que levaram a eleição de um deputado privado de qualquer significação pública, como o senhor Severino Cavalcanti, (PT-PE), que obteve 300 votos contra apenas 195 dados ao candidato oficial do partido e do governo, Sr. Eduardo Grenhalgh (PT-SP). Entre as muitas causas imediatas se invoca a insuficiente articulação do ministro Aldo Rebello (Coordenação Política) e do presidente do PT, José Genoino, a dissidência gerada pelo deputado Virgílio Guimarães (PT-MG), a pouca representatividade na Câmara do candidato oficial, a não intervenção direta do presidente Lula e varias outras causas e circunstâncias. Esse tipo de análise é correto, mas completamente insuficiente.

A vitoria do ''baixo clero'', elegendo para presidente da Câmara um de seus típicos representantes, não teve caráter partidário. O que teve caráter partidário foi a derrota do presidente Lula e do PT. Essa derrota, embora para ela tenham contribuído, como se tem alegado, diversas causas e circunstâncias, se deve a algo muito mais profundo. Algo que vem entorpecendo o sistema político brasileiro desde a constituição de 1986. Algo que se resume no fato de que o que se instituiu no Brasil, não foi uma democracia representativa e sim uma democracia de clientela.

O clientelismo vem minando a governabilidade do Brasil desde a Presidência Sarney e constituiu o mais sério obstáculo, entre os alheios a sua vontade, com que se defrontou continuamente Fernando Henrique Cardoso. Personalidade brilhante e sedutora, o mais qualificado presidente da história do Brasil, que se distinguiu, em seus dois mandatos, como o pessoalmente mais importante chefe de Estado e de governo então no exercício do poder, Fernando Henrique logrou estabelecer uma razoável base parlamentar, no âmbito desse desinibido clientelismo que marca a política brasileira, combinando alianças extremamente pragmáticas, como a do PSDB com o PFL, com um habilidoso e assíduo contato com os parlamentares. Conseguiu, dessa forma, evitar sérios contratempos no congresso, como o que ora ocorreu com o governo Lula. Mas pagou o preço de executar uma política econômica neoliberal, contrária as suas idéias, que o impediu de realizar seus grandes projetos desenvolvimentistas.

O Brasil teve a inaudita sorte de a sucessão do rei filósofo caber ao homem da mais modesta extração social, mas dotado de excepcional inteligência e mentalidade, ademais de ser uma excelente e generosa pessoa humana, que levou para a direção da república, um grande e autentico propósito de mudança social - mudança que todavia ainda não pode realizar. Isto não obstante, granjeou o maior prestigio internacional para o Brasil. Enquanto esse prestígio, no governo de Fernando Henrique, foi devido às suas excepcionais qualidades pessoais, Lula o conquistou por suas posições públicas, indo do reconhecimento de sua liderança democrática pelo reacionarismo de Bush, à aceitação de suas propostas sociais pela ultra conservadora cúpula de Davos, até à adesão, ao seu projeto sul-americano, de Chávez e Uribe até o Cone Sul.

É neste momento de êxito e de máxima aceitação de sua liderança e de seus projetos que Lula sofre severa derrota na Câmara, ameaçando o que parecia, até então assegurado, sua reeleição. É indispensável que Lula, não apenas em função de suas aspirações mas tendo em vista o próprio destino do Brasil extraia, desse grave contratempo, as devidas lições. Estão em jogo, sem duvida, uma multiplicidade de coisas, tanto de ordem pessoal quanto no que se refere à composição do governo, repleto de incapazes premiados por suas meras credenciais partidárias, como no que diz respeito à conduta pública do PT. Há que se levar em conta todas essas coisas. O essencial, entretanto, consiste em compreender que o clientelismo político se tornou um incontornável obstáculo, que priva o Brasil de um mínimo de governabilidade e não lhe permitirá atingir o grande destino que hoje já lhe está sendo prognosticado por competentes analistas internacionais e domésticos.

Não caberia, nas restritas dimensões de um artigo como este, uma apropriada indicação de como superar, sustentavelmente, a praga do clientelismo. Limitar-me-ei a mencionar as três conveniências fundamentais que estão em jogo: (1) conveniente regime eleitoral e regulatório dos partidos; (2) convenientes alianças políticas; (3) conveniente ministério de transição.

É matéria de consenso, entre os estudiosos, a indispensável e urgente necessidade de se adotar novo regime eleitoral, baseado no sistema distrital misto, de per si tendencialmente excludente do clientelismo. É igualmente consensual a necessidade de se acabar com os partidos meramente clientelistas ou de aluguel, conjuntamente com a adoção do principio da fidelidade partidária. Dos doze partidos com representantes na Câmara apenas três - PT, PSDB, e PFL - sem embargo de significativa persistência, em cada um deles, de clientelismo, têm uma efetiva significação pública. Seus deputados somam 208. A estes se pode adicionar os 15 votos dos pequenos partidos ideológicos, PC do B e PV. No total, 223 votos, sobre um total de 513 deputados. A diferença, não obstante importante margem de inconsistências, praticamente corresponde aos votos que elegeram Severino Cavalcanti.

As duas outras conveniências aqui somente podem ser mencionadas: alianças e regime de transição. Este país não pode executar um grande projeto nacional se este não se basear em alianças políticas congruentes. Somente uma aliança pode atender a essa exigência: a dos dois movimentos social-democratas, o PT com o PSDB, precisamente os antagonistas de hoje. Para esse efeito impõe-se ao presidente Lula a corajosa decisão de assumir a necessária, mas difícil tarefa de construir essa aliança. E, enquanto faça montar o novo ministério satisfatoriamente competente, que maximize a possível margem de governabilidade ora existente, se empenhe em realizar sua maior obra pública, que é a montagem, para a sua própria reeleição, mas para um longo e próspero futuro, de uma séria aliança PT/PSDB.