Título: 'Lula é um fenômeno'
Autor: Norma Couri Especial para o JB
Fonte: Jornal do Brasil, 20/02/2005, Internacional, p. A13

Entrevista: Mário Soares

- O primeiro-ministro governou tão mal assim?

- Foi pior do que se imaginava. Confusão todos os dias. Deixou o povo português no estado em que está, deprimido, crítico, descontente, revoltado, com poder de compra reduzido.

- Tudo começou quando o primeiro-ministro eleito, Durão Barroso, tornou-se presidente da Comissão Européia (CE), designando o vice, Santana Lopes, para ocupar o cargo, não?

- Foi uma reação em cadeia. Ao ser eleito, Barroso prometeu cumprir o mandato até o fim, mas anunciou a saída para a CE oito dias depois. Antes dele, os primeiros-ministros de Luxemburgo e da Holanda recusaram o cargo para honrar a confiança de seus povos. O nosso, ambíguo, traiu-a. Santana Lopes, que tinha aceito ser prefeito de Lisboa e largou o cargo para ser vice de Barroso, deixando um caos na cidade, foi catapultado para primeiro-ministro. Deu no que deu. Estou convencido de que as eleições vão dar maioria absoluta ao Partido Socialista.

- Qual o peso da vitória socialista? Portugal, nesse caso, volta a ter a Presidência e o governo do mesmo partido.

- Há três anos a Europa tinha 11 governos socialistas. Hoje, além da força da direita, há um descontentamento da esquerda com partidos que seguem a política de Bush, sem falar do Berlusconi na Itália. A exceção foi a vitória de José Luis Zapatero, que provocou uma pequena revolução pacífica na Espanha, retirando as tropas do Iraque e assumindo uma posição progressista em relação à América Latina, que interessa muito a Portugal.

- Por quê?

- Portugal é um país europeu formando com a Espanha a Península Ibérica. Contribuímos para tornar visíveis civilizações desconhecidas na Europa e levamos tecnologia e pensamento europeu para o mundo. Ninguém se esqueça de que fomos nós, os ibéricos, que fizemos isso. Temos um universalismo humanista desde o século 16. A novidade disso é que começa a existir um mercado ibérico, atualmente mais vantajoso para a Espanha do que para Portugal, mas logo será o contrário.

- E onde Brasil e América Latina entram nisso?

- Esse é o mercado que vai influenciar a Europa a criar uma relação especial com a América Latina. Somamos mais de 700 milhões de pessoas, um décimo da humanidade que fala praticamente a mesma língua, falantes de português e espanhol entendem-se bem. Essa é a nossa riqueza e diversidade, o nosso papel a partir de hoje, com governos socialistas em harmonia de pensamento e ação.

- Que papel?

- Defender com unhas e dentes esse alargamento, porque é do interesse da Europa. A União Européia (UE) tem tratado mal a Íbero América com pactos que só beneficiam os grandes agricultores franceses e alemães, impedindo a entrada da carne e do leite latino. A partir de hoje, os governos socialistas, espanhol e português, vão denunciar esse encurtamento de visão. A Europa só tem a ganhar dando respaldo à Ibero América, tornando-a um parceiro importante no combate às exorbitâncias dos Estados Unidos.

- O presidente Luis Inácio Lula da Silva é importante para alavancar esse processo de influência na Europa?

- Muito. Sou amigo de Fernando Henrique mas é preciso reconhecer que Lula é um fenômeno, um torneiro mecânico eleito por 53 milhões de votos. O prestígio dele é imenso no Terceiro Mundo e na Europa. Os críticos podem até ter razão, dizendo ele não abriu os arquivos da ditadura. Mas nós, por exemplo, pusemos uma pedra sobre o assunto, sem vinganças nem turbulências. Dizem também, que sua política econômica é idêntica a de Fernando Henrique, o que é verdade. Mas poderia ele assumir uma atitude heróica e ficar asfixiado como Salvador Allende no Chile dos anos 70? Como Allende, Lula chegou ao poder por vias legais para fazer uma revolução, sim. Mas é preciso dar tempo ao tempo. Lula foi capaz de liderar os países de Terceiro Mundo em Cancún numa revolta contra os EUA e a Europa. Por trás dele estavam nada menos que a Índia e a China. Isso não é para qualquer um.

- O senhor tem projetos para muito tempo. Acaba de completar 80 anos e sei que está sendo sondado para a Presidência outra vez. O que o senhor vai fazer daqui para frente?

- Meus interesses são coletivos. Os pessoais são secundários. Exerci o cargo de presidente durante 10 anos, e querem me empurrar de volta. Sei que não devo. Sei que quero ser eu próprio, intervindo civicamente, o que é tão importante quanto a política partidária. E vivendo como Manoel de Oliveira, que tem 96 anos e faz um filme por ano. Ou como o meu amigo e médico do Partido Socialista, que comia de tudo, bebia de tudo e garantia que estava programado para viver 110 anos, mas viveu só 104.