Correio Braziliense, n. 22650, 26/03/2025. Política, p. 8
“História esquizofrênica”
A regulamentação da aquisição de terras por estrangeiros no Brasil desperta intensos debates há décadas. Originária da ditadura militar, a legislação restritiva a essas transações tem passa do por diferentes interpretações ao longo dos anos, dependendo do contexto político e econômico do país. Para o advogado e professor Luciano de Souza Godoy a evolução normativa do tema é uma “história esquizofrênica”.
Segundo Godoy, a atual legislação reflete um paradoxo: foi criada nos anos 1970 para evitar uma possível revolução camponesa inspirada em Cuba e, décadas depois, foi reforçada por um governo de esquerda, preocupado com a venda indiscriminada de terras para grupos estrangeiros. O principal entrave apontado pelo professor é a insegurança jurídica gerada pela falta de clareza na definição do que é uma empresa brasileira de capital nacional. “A Ambev é uma empresa brasileira ou estrangeira? Hoje em dia, tudo é uma questão de múltiplas jurisdições”, provocou o professor, destacando a complexidade de aplicar as restrições de compra de terras a grupos econômicos globalizados.
Outro problema levantado é a interpretação das regras pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O órgão segue orientações que vedam a aquisição e o arrendamento de terras por estrangeiros, mas deixa brechas para outros mecanismos, como o usufruto e o direito de superfície.
Na prática, lembrou o especialista, investidores encontram alternativas para contornar as restrições, o que evidencia a necessidade de uma regulamentação mais eficiente e transparente.
Papel do STF
Para Godoy, a questão poderá ter um marco do Supremo Tribunal Federal (STF), que analisa ações sobre o tema, como a ADPF 342 e a ACO 2463. O especialista destaca que, como ocorreu em outros casos emblemáticos — a união homoafetiva e a descriminalização da maconha —, a indefinição do tema no Congresso pode levar o Judiciário a definir o alcance da lei sobre terras.
No entanto, o professor defende que a solução ideal não deve vir apenas do STF, mas também de uma nova estrutura regulatória. “O Incra foi criado para cuidar da reforma agrária, não para regular investimentos estrangeiros no agronegócio”, argumentou. Ele sugere a criação de uma agência reguladora específica, nos moldes das que já existem para telecomunicações, portos e aeroportos.
Um ponto central da argumentação de Godoy é a necessidade de interpretar as restrições à aquisição de terras à luz da função social da propriedade, princípio estabelecido no artigo 186 da Constituição Federal. Esse conceito impõe que a terra cumpra um papel produtivo, respeite o meio ambiente e os direitos trabalhistas, o que poderia servir de critério para uma regulamentação mais equilibrada.
Para o especialista, o caminho ideal seria que o STF adotasse uma interpretação que harmonize a segurança jurídica dos investidores com a proteção da soberania nacional, garantindo que as terras cumpram sua função social.
Diante da relevância econômica do agronegócio e do crescente interesse de investidores estrangeiros no Brasil, o debate sobre a modernização do marco regulatório da aquisição de terras tende a ganhar força nos próximos anos. A definição de regras mais claras e eficazes pode ser um passo essencial para equilibrar o desenvolvimento econômico com a preservação da soberania e dos interesses nacionais.
O Congresso Nacional terá a oportunidade de se antecipar ao STF e construir um arcabouço legal adequado à realidade do século XXI. Caso contrário, a decisão ficará novamente nas mãos do Judiciário – uma situação que, como destaca Godoy, tem se tornado cada vez mais comum em temas complexos da política e da economia brasileira.