O Estado de S. Paulo, n. 48068, 26/05/2025. Política, p. A8

PGR entra em sintonia com Moraes contra bolsonaristas
Hugo Henud

 

 

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes tem atuado em sintonia com o procurador-geral da República, Paulo Gonet, na análise dos processos sobre o 8 de Janeiro e a trama golpista envolvendo o ex-presidente Jair Bolsonaro. Levantamento realizado pelo Estadão mostra que, em cerca de 85% dos casos, Moraes acolheu integralmente os posicionamentos da Procuradoria-Geral da República (PGR).

O voto do ministro na última terça-feira, que rejeitou parte da denúncia contra dois militares do chamado “núcleo 3” do grupo acusado de tentar um golpe de Estado, se encaixa nos 15% que fogem ao padrão que vem se consolidando desde o final de 2023, quando Gonet assumiu o comando do Ministério Público Federal.

Esse amplo alinhamento entre STF e PGR contrasta com o cenário vivido na gestão anterior de Augusto Aras, marcada por divergências e críticas à postura do então procurador-geral. Nas mesmas frentes de investigação ligadas ao 8 de Janeiro, apenas 52,7% das manifestações da Procuradoria sob Aras foram acolhidas por Moraes, relator de todas as ações sobre o tema.

Foram analisadas 211 manifestações de Aras nos inquéritos 4.921 a 4.923, relacionados ao 8 de Janeiro. Além disso, o levantamento incluiu 418 manifestações da PGR nestes casos, mas também na Petição 12.100 e em ações penais que se originaram dela e dos inquéritos entre dezembro de 2023 e maio de 2025.

Essa lista inclui denúncias e pareceres ligados a inquéritos sobre participantes, autores intelectuais e financiadores dos atos golpistas, investigações sobre a tentativa de golpe e ações penais emblemáticas, como as que envolvem Bolsonaro e a cabeleireira Débora dos Santos Rodrigues.

Das 418 manifestações da PGR sob Gonet, 85,6% foram integralmente acolhidas por Moraes; em 14,4% ele discordou total ou parcialmente. Para especialistas ouvidos pelo Estadão, o índice é expressivo. Embora a Procuradoria tenha um papel central nas investigações e na acusação, o relator não é obrigado a seguir seus pareceres, podendo acolher, rejeitar ou modular os pedidos com base em sua leitura dos autos.

PAPÉIS. Cabe à PGR conduzir a acusação penal no STF, propor denúncias e se manifestar ao longo da tramitação dos processos. Entre as manifestações consideradas estão pedidos de prisão preventiva, pareceres sobre liberdade provisória, como na soltura de Mauro Cid, e requerimentos de medidas cautelares. Já ao relator cabe conduzir o processo e decidir sobre cada uma dessas demandas.

Trajetória comum

Para especialistas, fato de ministro ter atuado no MP de São Paulo contribui para alinhamento

A apresentação da denúncia contra Jair Bolsonaro, em fevereiro, foi um dos marcos mais simbólicos dessa sintonia institucional. Assinada por Gonet, a peça acusa o ex-presidente e sete aliados de integrar o “núcleo crucial” da tentativa de golpe em 2022. A Primeira Turma do STF aceitou a denúncia por unanimidade, e Bolsonaro passou a responder como réu por cinco crimes. Mais da metade das 418 manifestações de Gonet analisadas dizem respeito a denúncias contra réus do 8 de Janeiro.

A sincronia entre ambos também serviu, em alguns momentos, para distensionar o ambiente político. Na mesma semana em que a Primeira Turma do STF tornou Bolsonaro réu por tentativa de golpe, Gonet defendeu a substituição da prisão em regime fechado por domiciliar no caso da cabeleireira Débora Rodrigues, que ficou conhecida por pichar a estátua da Justiça com batom. Moraes acatou o pedido, permitindo que ela aguardasse o julgamento em casa.

O procurador-geral também solicitou medidas semelhantes para outros réus de menor protagonismo, em decisões acompanhadas por Moraes e tomadas em meio a críticas às penas aplicadas, que abriram caminho para a articulação do PL da Anistia na Câmara dos Deputados.

PERFIL TÉCNICO. Indicado por Lula no fim de 2023, Gonet foi apresentado como um nome de perfil técnico. Próximo do ministro Gilmar Mendes, de quem foi sócio no Instituto de Direito Público (IDP) até 2017, ele manteve interlocução com Moraes durante as eleições de 2022. À época vice-procurador-geral Eleitoral, assinou o parecer pela condenação de Bolsonaro por abuso de poder no TSE.

Apesar da interlocução, a professora da ESPM-SP Ana Laura Barbosa avalia que a sintonia e a alta taxa de concordância entre Gonet e Moraes estão mais ligadas ao perfil técnico e ao histórico profissional do ministro do que a uma afinidade institucional. Moraes atuou por mais de uma década como promotor de Justiça em São Paulo, o que ajuda a explicar sua postura mais firme em temas criminais. Esse histórico, diz ela, favorece naturalmente decisões que se alinham à posição da PGR, sem que isso represente endosso automático às teses do órgão.

O criminalista Renato Vieira concorda que a experiência no MP explica parte da sintonia, mas pondera que isso não é suficiente para justificar o elevado grau de convergência. Ele lembra que outros ministros egressos do MP, como Sepúlveda Pertence e Celso de Mello, adotaram posturas mais independentes em relação à PGR. “Não é saudável esse alinhamento. É um mau exemplo. As estatísticas mostram uma convergência alta demais, e isso não é bom.”

DESEQUILÍBRIOS. Vieira também critica o fato de que esse alinhamento contribui para desequilíbrios estruturais no processo penal brasileiro. Em sua visão, o acúmulo de funções da PGR como órgão acusador e fiscal da lei dá peso desproporcional às suas manifestações perante o Judiciário. “O Ministério Público acaba, em muitos casos, sendo mais respeitado que as defesas. Isso é um erro do sistema jurídico brasileiro.”

Embora a sintonia seja predominante, também houve divergência. Em fevereiro de 2024, por exemplo, no inquérito da trama golpista, a PGR se manifestou contra a proibição imposta ao presidente do PL, Valdemar Costa Neto, de manter contato com outros investigados e viajar para fora do País. Mas Moraes manteve as medidas.

Na análise da denúncia contra os 12 acusados do “núcleo 3” da tentativa de golpe, semana passada, Moraes votou pelo acolhimento parcial da denúncia, citou falta de elementos e excluiu dois militares: o coronel da reserva Cleverson Magalhães e o general da ativa Nilton Diniz Rodrigues. Os demais ministros acompanharam o relator. Foi a primeira vez que Moraes poupou parte dos denunciados em ações penais relacionadas ao 8 de Janeiro.

ANTECESSOR. Durante a gestão de Augusto Aras, a dinâmica era oposta. Moraes frequentemente ignorava pareceres da PGR, dava protagonismo à Polícia Federal e tomava decisões de ofício, sem consultar a Procuradoria, inclusive em momentos centrais de investigações contra Jair Bolsonaro e os ataques do 8 de Janeiro.

Indicado pelo ex-presidente, Augusto Aras comandou a PGR entre 2019 e setembro de 2023, sendo alvo de críticas recorrentes por omissão, inclusive de ministros do Supremo. Embora tenha deixado o cargo antes do avanço das denúncias formais, ele participou de parte dos processos incluídos no levantamento, com destaque para os inquéritos sobre os atos antidemocráticos. No decorrer dessas investigações, houve 211 manifestações da PGR sob a gestão Aras, das quais só 52,7% foram acolhidas por Moraes.

Para Ana Laura Barbosa, a atuação de Aras destoou do padrão da PGR, que é de mais convergência com os relatores. “Aras foi uma exceção à regra”, avalia a professora.

“Não é saudável esse alinhamento. É um mau exemplo. As estatísticas mostram uma convergência alta demais, e isso não é bom”

Renato Vieira

Especialista em Direito Penal

Renato Vieira concorda e avalia que Moraes agiu corretamente diante do que classifica como comportamento omisso de Aras nas investigações. O criminalista aponta, inclusive, que foi a postura passiva do então procurador-geral que levou Moraes a assumir um papel de protagonismo dentro do Supremo. “Foi nesse período que ele foi ungido (pelos colegas) para ser o defensor da instituição, pelo fato de que o PGR não fazia nada diante dos ataques aos ministros”, recorda o advogado.

Agora, diante do protagonismo que exerce nos casos mais sensíveis do Supremo, Vieira avalia que há aspectos da atuação de Moraes que merecem crítica, especialmente quando adota uma postura semelhante à do Ministério Público. Como exemplo, cita a condução da delação premiada de Mauro Cid, na qual, segundo ele, Moraes foi além da postura de juiz. “Quando o juiz atua como se fosse parte, o sistema perde credibilidade”, afirma. •