O Estado de S. Paulo, n. 47991, 10/03/2025. Política, p. A7

Secretária do PT diz que Cultura deu aval a uso de programa em campanhas
Vinícius Valfré

 

 

A secretária nacional de Mulheres do PT, Anne Moura, afirmou que comitês de cultura criados pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e pela ministra da Cultura, Margareth Menezes, foram usados para eleger aliados em 2024 com o aval da cúpula da pasta e que “quem foi para a frente da prisão” precisa ter atendimento diferenciado na hora da “parte boa”. Criado em setembro de 2023, o Programa Nacional de Comitês de Cultura (PNCC) vai custar R$ 58,8 milhões até o fim deste ano com ações de mobilização, apoio e formação de artistas. É uma das principais iniciativas da pasta e foi anunciada por Lula ainda na pré-campanha de 2022.

As declarações da secretária, que tem base em Manaus (AM), são de setembro do ano passado, em reunião com o exchefe do comitê do Amazonas Marcos Rodrigues. Eles romperam politicamente no fim do ano. A conversa foi gravada e registrada em cartório. O Estadão teve acesso ao conteúdo.

Retribuição Para secretária, comitê deveria privilegiar ‘quem foi para a frente da prisão’ apoiar Lula

Em nota, Anne Moura afirmou que é alvo de calúnia e que os questionamentos dela à atuação do ex-presidente da entidade cultural “podem estar sendo reproduzidos fora de contexto”. O Ministério da Cultura disse que o relato sobre a atuação de servidores da pasta é inverídico e que o comitê do Amazonas teve atividades suspensas e recursos bloqueados para apuração de possíveis irregularidades (mais informações nesta página).

No encontro gravado pelo ex-aliado, Anne exigiu que Rodrigues envolvesse a estrutura do comitê na campanha dela à Câmara Municipal de Manaus e afirmou que a falta de empenho do comitê amazonense foi classificada como “absurdo” pela secretária do ministério que cuida do PNCC, Roberta Martins. Anne não foi eleita.

Na gravação, ela também reclama de o comitê escolher artistas para atividades “sem combinar na política quem são os artistas parceiros” e diz que levou sua insatisfação ao secretário executivo da pasta, Márcio Tavares. Número 2 de Margareth Menezes, Tavares foi secretário nacional de Cultura do PT.

COBRANÇA. “Marcos, quando eu fui no MinC, o pessoal perguntou: ‘Anne, o comitê tá te ajudando?’ Eu disse: ‘Não, Roberta, não tá’. Ela perguntou: ‘O comitê tá te ajudando? Porque nos outros lugares está tudo ajudando’. Porque eu fui pedir dinheiro também, tô pedindo ajuda para ganhar a eleição. Aí ela disse: ‘O comitê não pode te dar dinheiro, mas eles podem promover atividade para te ajudar’. Eu disse: ‘Roberta, temos acordos que não foram cumpridos. Depois que as pessoas sentaram na cadeira, pagaram de doidas. Eu preciso ganhar a eleição. Então, se tu puder me ajudar, daqui, na articulação tua e do Márcio, eu te agradeço’”, diz Anne.

O PNCC contrata entidades culturais para receber verba pública e coordenar ações de fomento à cultura nos Estados. No Amazonas, o governo selecionou para a tarefa o Instituto de Articulação de Juventude da Amazônia (Iaja), ONG que tem Anne como uma das fundadoras e tinha como uns dos diretores Ruan Octávio da Silva Rodrigues. Para o trabalho, o Iaja vai receber R$ 1,9 milhão em dois anos. Militante do PT e aliado de Anne, Ruan Octávio coordena no Amazonas o escritório do Ministério da Cultura.

A pasta afirma que as seleções das ONGs se deram com base na qualificação profissional dos contemplados. No entanto, as declarações de Anne na reunião gravada indicam influência política e partidária dela na escolha. Segundo afirmou a secretária, a aprovação do Iaja se deu por pressão dela.

“Eu disse (para Roberta): ‘Eu quero pedir que vocês vão lá no Amazonas para botar cada um no seu lugar. Quero que tu diga da tua boca que fui eu que vim aqui pedir para ser aprovado o Iaja. Eu quero que você fale para eles lá. Porque as pessoas estão o tempo todo dizendo que não foi’. Ela disse: ‘Isso

é um absurdo, Anne. A gente faz política’. ‘Pois, é. Eu quero te pedir esse favor’.”

‘ARTICULADOS’. A secretária continua: “Ela (Roberta) disse: ‘A hora que você me ligar eu vou até o Amazonas e converso com o comitê. A gente não faz coisa solta, não’. Aí ela me mostrou os mapas dos comitês. ‘Os comitês, no Brasil todo, tão articulados com nosso povo. Foi uma estratégia orga

nizada com o presidente Lula. A principal pauta que a gente levantou, através da própria Janja... É inaceitável que isso esteja acontecendo’.”

Em outro trecho da conversa gravada, a secretária ameaçou uma intervenção no órgão federal de cultura no Amazonas por causa do protagonismo de André Guimarães, assessor de projetos do comitê e militante do PSOL. E manifestou indignação pela não predileção por “artistas parceiros escolhidos na política” e com a participação de Wanda Witoto (Rede) em ato do comitê. Ambas disputavam parte do mesmo eleitorado em 2024.

“O comitê não é do André. Toda a cidade está dizendo que o comitê é do André, embora quem coordene a instituição seja nós (...) O comitê dar o microfone na mão da Wanda para ela dizer que isso não tem a ver com a política? Vocês escolherem artistas sem combinar quem são os artistas parceiros...” Anne recebeu R$ 428,4 mil do PT para a campanha. Wanda obteve R$ 396 mil da Rede e, assim como a petista, também não foi eleita.

‘PARTE BOA’. Para Anne, ainda na gravação, a política pública do comitê de cultura deveria focar em aliados do PT por retribuição pelo que fizeram em defesa de Lula no período em que o presidente ficou preso por condenação na Lava Jato. “Quem foi lá para frente da prisão gritar de manhã, de tarde e de noite fomos nós. E agora chega na parte boa, a gente vai ficar olhando? Não vamos ter nenhuma opinião nesse processo? Só tem comitê porque tem Lula. E só tem Lula porque tem base, que somos nós. É inaceitável o que tá acontecendo.”

Apesar das queixas de Anne sobre a falta de “ajuda” do comitê de cultura, o órgão endossou a candidatura dela em postagens nas redes sociais. O perfil oficial do comitê republicou peças de campanha da secretária do PT. A iniciativa, porém, descumpriu orientação expressa da diretora de Articulação e Governança da pasta, Desiree Tozi.

Em documento datado de 17 de julho, ela afirmava que todos os comitês e entidades parceiras deveriam publicar conteúdos de “caráter exclusivamente educativo, informativo ou de orientação social”. Estavam proibidos “nomes, símbolos ou imagens” que demonstrassem “preferências político-partidárias” ou caracterizassem “promoção pessoal de autoridades, servidores candidatos ou pré-candidatos”.