O GLOBO, n 32.330, 11/02/2022. Brasil, p. 9

MEIO MILHÃO DE CHANCES PERDIDAS

Bruno Alfano, André de Souza e Daniel Gullino


Após reduzir gastos, MEC recria programa para alfabetizar adultos 

Em crise após dois anos tendo os menores gastos do século XXI, a Educação de Jovens e Adultos (EJA) perdeu mais de meio milhão de estudantes nos três primeiros anos do governo Jair Bolsonaro. A modalidade, única maneira de recuperar a escolarização daqueles que tiveram que sair da escola na infância e adolescência, passou de 3,5 milhões de matrículas em 2018 para 2,9 milhões no ano passado, de acordo com o Censo Escolar.

— A EJA não pode ser um anexo, mas uma política pública efetiva no país. Para aprender não tem idade — avalia Lourival José Martins Filho, professor da Universidade do Estado de Santa Catarina e Presidente da Associação Brasileira de Alfabetização.

O presidente Jair Bolsonaro editou ontem um decreto que restabelece o programa Brasil Alfabetizado, destinado a quem tem 15 anos ou mais. O projeto foi criado em 2003, no governo Lula, mas estava parado desde 2016, de acordo com o Ministério da Educação.

SEM MEDALHA PAULO FREIRE

Ao restabelecer o programa, no entanto, o governo federal acabou com um dos pontos originais: a Medalha Paulo Freire, que era concedida a personalidades e instituições que se destacaram nos esforços de erradicação do analfabetismo.

Filósofo e educador, Freire (1921-1997) é alvo frequente do presidente, apesar de ser o terceiro autor mais citado no mundo em ciências humanas. Em 1963, o pedagogo pernambucano colocou em prática um bem-sucedido método de alfabetização de adultos com um grupo de trabalhadores de Angicos, no interior do Rio Grande do Norte, em experiência que ofereceu o ensino a 300 pessoas em apenas 40 horas de estudo. Quando expandiria seu método para o Brasil, o projeto foi abortado após o golpe militar de 1964.

Questionado pelo GLOBO sobre a supressão da medalha, o MEC limitou-se a responder que quem se destacar nessa área receberá uma outra condecoração, a Ordem Nacional do Mérito Educativo, também criada em 2003.

CRISE DE FINANCIAMENTO

De acordo com o ministério, o Brasil Alfabetizado beneficiou cerca de 15 milhões de pessoas, mas estava parado desde 2016, último ano do governo Dilma Rousseff. Naquele momento, o orçamento apenas desse programa havia despencado de R$ 572 milhões de 2014 para R$ 129 milhões (em valores atualizados pelo IPCA), o que deixou boa parte dos estudantes sem material didático.

A partir do ano seguinte, no governo Michel Temer, o orçamento geral para a Educação de Jovens e Adultos começou a cair, até chegar aos menores níveis do século, em 2020 e 2021, com R$ 8 milhões e R$ 5 milhões, respectivamente.

— Num país em que estar alfabetizado é exercício de cidadania e participação, programas que estimulem a alfabetização de jovens, adultos e idosos são fundamentais — diz Lourival. — Mas para esse programa ser exitoso, precisa dialogar com as universidades, valorizar professores e reconhecer que aquele que aprende pode ser ouvido.

Pesquisa do IBGE mostrou que a taxa de analfabetismo entre pessoas com 15 anos ou mais foi de 6,6% em 2019. O percentual corresponde a 11 milhões de pessoas. Além disso, mais de 40 milhões de brasileiros não terminaram o ensino básico (fundamental e médio).

APOIO FEDERAL

De acordo com o ministério, o objetivo da recriação do programa é "conferir maior eficácia" à sua execução. "O desenho atual permitirá um melhor planejamento, ao requerer que etapas preparatórias sejam realizadas antes da adesão. Essa iniciativa propiciará uma melhor gestão do programa, além de evitar os atrasos que eram frequentes nos ciclos anteriores e prejudicavam sua execução e monitoramento", informou o MEC.

De acordo com o texto do decreto, o governo federal deverá oferecer assistência técnica e financeira aos municípios que desejarem participar do programa — a adesão é voluntária. Serão priorizadas localidades com grandes índices de analfabetismo.

A assistência técnica vai incluir a distribuição de materiais de orientação e de formação, e instrumentos de avaliação. A assistência financeira vai custear bolsa e transporte para os alfabetizadores; alimentação escolar dos alunos; material escolar e impressão de material pedagógico.

Desde sua criação, o Brasil Alfabetizado destina verba para que voluntários, que não precisam ser professores, abram turmas de alfabetização sob a supervisão das secretarias municipais.

"A EJA não pode ser um anexo, mas uma política pública efetiva no país" _

Lourival José Martins Filho,
Presidente da Associação Brasileira de Alfabetização

"O desenho atual permitirá um melhor planejamento da execução do programa, ao requerer que etapas preparatórias sejam realizadas antes da adesão" _

MEC, em nota sobre as mudanças no Brasil Alfabetizador