O GLOBO, n 32.330, 11/02/2022. Mundo, p. 18
América Latina teve o maior recuo democrático em 2021, diz Economist
André Duchiade
Piora refletiria descontentamento público com combate à Covid, que amplificou ceticismo com governos e tolerância com autoritarismo
A democracia na América Latina sofreu um severo retrocesso em 2021 e o presidente Jair Bolsonaro colaborou para isso, ao lado de presidentes populistas como Andrés Manuel López Obrador, do México, e Nayib Bukele, de El Salvador, e de líderes autoritários, como Nicolás Maduro, da Venezuela, e Daniel Ortega, da Nicarágua.
Quem aponta essa conclusão é o ranking Índice da Democracia Global 2021, publicado na quarta-feira pela revista britânica The Economist. O levantamento é feito a partir de um estudo da Economist Intelligence Unit, a divisão de pesquisas e análises do grupo que publica a revista de perfil liberal na economia e nos costumes.
SEXTA QUEDA CONSECUTIVA
Publicado desde 2006, o índice usa 60 indicadores para examinar o estado da democracia em 167 países. Os critérios agrupam-se em cinco categorias: processo eleitoral e pluralismo, liberdades civis, funcionamento do governo, participação política e cultura política. Os países são então classificados em democracias plenas, democracias imperfeitas, regimes híbridos e regimes autoritários.
No conjunto, a América Latina registrou o maior declínio de qualquer região desde o começo da organização dos índices há 16 anos. Esta foi a sexta queda consecutiva da região. Só o Uruguai e a Costa Rica agora merecem o selo de democracia plena.
A pontuação latinoamericana piorou em todas as categorias do índice em 2021, liderada por uma queda acentuada na nota de cultura política.
“Isso reflete o descontentamento público com o tratamento dado pelos governos à pandemia de coronavírus, que amplificou uma tendência preexistente de crescente ceticismo em relação à capacidade dos governos democráticos de enfrentar os problemas da região e de tolerância crescente com governos autoritários”, diz o relatório.
“O compromisso cada vez mais fraco da América Latina com uma política democrática deu espaço para o crescimento de populistas iliberais, como Jair Bolsonaro no Brasil, Andrés Manuel López Obrador no México e Nayib Bukele em El Salvador, além de fomentar regimes na Nicarágua e na Venezuela”, afirma o texto
Apesar de a avaliação do Brasil ter permanecido rigorosamente idêntica em quatro das cinco categorias, houve uma piora de 29 centésimos na nota de liberdades civis, que caiu para 7,65.O relatório da Economist não justifica a piora na nota brasileira: tão somente cita ameaças às instituições democráticas feitas pelo presidente Bolsonaro.
“O presidente Jair Bolsonaro exigiu a renúncia de dois membros do Supremo Tribunal Federal após uma investigação sobre alegações de que grupos pró-Bolsonaro estavam espalhando ‘fake news’”, começa o único parágrafo do relatório sobre o Brasil.
“Bolsonaro também questionou a integridade do sistema de voto eletrônico do Brasil, apesar de não haver evidência de fraude eleitoral. Bolsonaro chegou a dizer que ignoraria os resultados das eleições presidenciais e legislativas de 2022 — comentários que mais tarde ele retirou. Bolsonaro provavelmente continuará seus ataques às instituições democráticas e minará a confiança na integridade eleitoral antes das eleições de outubro de 2022, especialmente porque as pesquisas mostram que ele atualmente está atrás do ex-presidente de esquerda Luiz Inácio Lula da Silva”, conclui o trecho.
Desde o começo da aferição do ranking, o Brasil perdeu mais de 0,5 ponto em um total de dez. A democracia brasileira nunca conseguiu obter o status de “democracia plena” que exige uma avaliação superior a 8, mas conquistou sua melhor avaliação em 2006, em 2008 e em 2014, três anos em que tirou 7,38. Atualmente, a nota do país é de 6,86 —melhor que a Argentina, que tirou 6,81, e logo atrás da Índia, com 6,91.
NOTA PIORA, MAS BRASIL SOBE
Apesar da sua nota pior em comparação a 2020, outros países caíram tanto que a posição do Brasil no ranking global acabou por melhorar. O país agora ocupa a 47ª posição da lista, enquanto no ano passado estava em 49ª. Como um todo, a América Latina tem a média de 5,83, enquanto pontuava 6,09 em 2021 e 6,37 em 2006.
Para a Economist, a região experimentou o maior número de mudanças de tipo de regime em 2021. Cinco países foram rebaixados. Um deles foi o Chile; após se tornar uma “democracia plena” em 2019, antes da pandemia, o país foi relegado ao status de “democracia imperfeita” mais uma vez, em função dos “baixos níveis de confiança no governo, da baixa participação eleitoral nas eleições recentes e do aprofundamento da polarização”. Ao falar em “baixa participação eleitoral”, a pesquisa da Economist se equivoca, pois o segundo turno das eleições chilenas em dezembro registrou o maior comparecimento desde a volta da democracia em 1990.
Equador, México e Paraguai perderam seu status de “democracias imperfeitas ” e agora são designados como “regimes híbridos”. Já o status do Haiti mudou de “regime híbrido” para “regime autoritário”. A pontuação da Nicarágua caiu acentuadamente após uma eleição presidencial de cartas marcadas realizada em novembro de 2021, e o país caiu 20 lugares no ranking global, para o 140º lugar.
Um resultado ainda pior para a região foi evitado por melhoras modestas no desempenho da República Dominicana (+0,13), da Guiana (+0,24) e do Uruguai (+0,24), os únicos países cujas pontuações melhoraram. Três países (Jamaica, Suriname e Trinidad e Tobago) mantiveram as mesmas pontuações de 2021.
Globalmente, o percentual da população mundial que vive sob algum tipo de democracia encolheu em 2021 para 45,7%, de 49,4% em 2020, diz a pesquisa. Dos 167 países pesquisados, só 21 foram considerados democracias plenas, representando 6,4% da população mundial, enquanto 53 se enquadraram na categoria de “democracias imperfeitas”.
No topo da lista estão Noruega, Nova Zelândia e Finlândia. Os EUA, considerados democracia imperfeita, caíram uma posição, para o 26º lugar. Afeganistão e Mianmar ocuparam os dois últimos lugares, logo após Coreia do Norte.
IMPACTO DA PANDEMIA
A Economist disse que os resultados refletem o impacto negativo da pandemia. Citando medidas como quarentenas e restrições de viagens, o relatório disse que a pandemia “resultou num recuo sem precedentes das liberdades civis nas democracias desenvolvidas e regimes autoritários”.
“Isso levou à normalização dos poderes de emergência, que tendem a permanecer nas leis escritas, e acostumaram os cidadãos a uma enorme extensão do poder do Estado sobre grandes áreas da vida pública e pessoal”, acrescentou o relatório. “O crescente autoritarismo que acompanhou a pandemia levanta questões sobre se, em que circunstâncias e por quanto tempo, governos e cidadãos estão preparados para minar os direitos democráticos em prol da saúde pública.”