O GLOBO, n 32.332, 13/02/2022. Economia, p. 18
DE MOEDAS A SERVIÇOS
Rennan Setti e João Sorima Neto
CIDADES USAM TECNOLOGIA PARA CRESCER
Sonhadas como alternativas libertárias ao controle estatal, as criptomoedas e a tecnologia por trás delas já conquistam até a mais local das esferas de governo. De moedas virtuais próprias a ferramentas para azeitar a governança pública, cidades de todo o mundo se abrem para o blockchain e afins. Embora algumas iniciativas “só molhem o pezinho nas possibilidades”, como define um observador, a ofensiva pode abrir caminho para cidades mais democráticas e eficientes, especulam especialistas. Tudo apoiado nas características fundamentais da tecnologia: registros imutáveis, teoricamente blindados de fraudes e que podem ser auditados por todos sem qualquer intermediário.
Nos EUA, Miami e Nova York disputam a corrida pelo título de capital das criptomoedas. Parte é marketing para atrair investimentos desse ecossistema —como os contracheques em bitcoin do prefeito nova-iorquino, Eric Adams, e os planos de Francis Suarez de pagar servidores de Miami com criptmoedas. Mas já há passos mais concretos.
Em parceria com a plataforma CityCoins, tanto Miami como Nova York endossaram a emissão de criptomoedas que levam os nomes das duas cidades no fim do ano passado. Elas não são oficiais, mas parte delas irá para os cofres públicos —Miami, por exemplo, vai receber US$ 22,5 milhões como parte do acordo.
Lá, aliás, a estratégia parece estar dando certo. Grandes empresas de criptomoedas como a FTX US, eToro e Bit Digital anunciaram planos de expansão em Miami.
—A marca de nascença das criptomoedas é sonegação de impostos, lavagem de dinheiro etc. Os esforços de governos ajudam a diminuir a percepção de que elas são usadas para atos ilícitos, embora o caminho seja longo —diz Isac Costa, professor do Ibmec.
‘CASHBACK’ NOS PLANOS
O Rio está se posicionando nessa corrida. Em janeiro, o prefeito Eduardo Paes disse que planejava lançar uma criptomoeda da cidade, alocar até 1% do Tesouro municipal em criptoativos e dar desconto a quem pagasse IPTU com bitcoins. Os planos ainda são incipientes: um grupo de trabalho recém-formado se debruça sobre aplicações concretas.
—Faz todo o sentido para a cidade estar inserida nesse futuro inevitável. Essa tecnologia é potencialmente revolucionária no campo social, e o Rio quer estar na vanguarda. Além disso, é uma forma de atrair investimentos. O setor financeiro é o maior recolhedor de ISS do Rio —diz Chicão Bulhões, secretário de Desenvolvimento Econômico e Inovação.
Thiago Medaglia, sócio do TozziniFreire e especialista em criptoativos, concorda:
— Há interesse em criar um ambiente de negócios favorável aos criptoativos.
Há iniciativas mais sofisticadas. Em artigo publicado na MIT Technology Review no ano passado, o secretário municipal de Planejamento Urbano, Washington Fajardo, e dois pesquisadores do MIT detalharam colaboração entre a prefeitura e a universidade em projeto para registrar em blockchain as ruas da Rocinha. O plano é usar a tecnologia para criar um cadastro imutável dos acessos à favela e facilitar a chegada de serviços públicos, como Correios e coleta de lixo, e viabilizar o registro de imóveis.
Outra vertente é a das chamadas moedas de recompensa, que premiam os habitantes por boas ações de cidadania. A ideia já foi testada em Tel Aviv e vem sendo desenvolvida em Viena e Seul. O balneário de Cascais, pertinho de Lisboa, planeja criar um cashback em criptomoeda para quem consumir no comércio local. Por aqui, um grupo desenvolve uma versão em Niterói.
A Nite será distribuída a niteroienses que usam bicicletários ou participam de programas de voluntariado, por exemplo. Ela dará desconto em eventos culturais e esportivos com patrocínio público, estacionamentos etc.
—A Nite é uma moeda de engajamento do cidadão e pode dar visibilidade ao ecossistema de inovação em Niterói —diz Andressa Torquato, professora da UFF que lidera o projeto da Nite.
Os pesquisadores ganharam um edital municipal, e o estudo técnico deve acabar este ano. Segundo a prefeitura, só após avaliar a viabilidade será possível prever o lançamento.
— Criptomoedas que circulem apenas em uma cidade garantiriam que parte da riqueza gerada nessa localidade circulasse exclusivamente ali, fomentando a economia local — diz João Manoel de Lima Junior, da FGV Direito Rio.
Além das criptomoedas, as cidades exploram aplicações do blockchain. Em Teresina, um projeto com financiamento de € 500 mil da Agência Francesa de Desenvolvimento (AFD) vai usar a tecnologia em iniciativa para melhorar a mobilidade. A prefeitura está criando um centro de operações nos moldes do carioca e atraiu três start-ups para desenvolver as ferramentas. Elas vão monitorar indicadores de qualidade, planejar as rotas e acompanhar a manutenção dos ônibus.
—O blockchain será parte integrante dessas soluções — diz Kárita Allen, secretária executiva de planejamento estratégico de Teresina.
LIXO E GASTOS PÚBLICOS
Agnóstica, a tecnologia está até no lixo. O blockchain serve para registrar as obrigações legais de grandes geradores de resíduos em São Paulo. O sistema desenvolvido pela empresa GreenPlat permite que a prefeitura rastreie mais de 18 mil toneladas de resíduos de 40 mil grandes empresa.
Já em João Pessoa, o Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio (ITS-Rio) capacitou servidores municipais para o potencial uso do blockchain em um projeto de habitação social.
—O blockchain é caro e mais lento que outras tecnologias. Mas tem dois atributos supervaliosos: transparência e imutabilidade. Isso pode abrir caminho para soluções ousadas. Por que não registrar todo o gasto público em blockchain? — diz Gabriel Aleixo, desenvolvedor de negócios da rede de blockchain brasileira Hathor.