O GLOBO, n 32.335, 16/02/2022. Brasil, p. 10

Desmatamento cresce nas áreas públicas da Amazônia

Aline Ribeiro


Grileiros avançam sobre florestas sem uso definido com auxílio de documentos oficiais, alerta estudo do  Projeto Amazônia 2030

Além de as taxas de derrubada de florestas na Amazônia durante o governo Bolsonaro alcançarem patamares não registrados há 14 anos, o perfil da devastação mudou entre 2019 e 2021. Neste período, 51% do desmatamento no bioma foram feitos em áreas públicas: terras indígenas e unidades de conservação, segundo um estudo exclusivo do Projeto Amazônia 2030, iniciativa do Imazon, Centro de Empreendedorismo da Amazônia, PUC-RJ e Climate Policy Initiative.

O levantamento apontou que durante a gestão Bolsonaro, o desmatamento ultrapassou os 10 mil km² ao ano, 56,6% mais do que a média anual dos três anos anteriores.

“USURPAÇÃO”

Segundo o trabalho, as áreas mais atacadas foram as que aguardam uma destinação pelos governos para conservação ou uso sustentável de seus recursos. Essas florestas somam 56,5 milhões de hectares no país, o equivalente a duas vezes o tamanho do estado de São Paulo. Até 2020, a vegetação de pelo menos 3,4 milhões de hectares havia sido derrubada ilegalmente.

— Está em curso hoje no país a maior usurpação de patrimônio público da história —afirma Paulo Moutinho, pesquisador do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e um dos responsáveis pela pesquisa do Amazônia 2030. — O processo todo é subsidiado por investidores, que desembolsam um bocado de dinheiro para o grileiro desmatar. E estimulado pela perspectiva futura de legalização da posse da terra pública.

Para Moutinho, o avanço nas terras públicas é explicado pelo desmonte do aparato de governança ambiental a partir de 2019. Associados a isso, segundo ele, estão fatores como a demanda crescente por produção agrícola e a flexibilização das regras fundiárias pelo Congresso e assembleias estaduais, que sinalizam aos grileiros que áreas ocupadas podem ser legalizadas.

Desde a Lei de Terras, de 1850, criminosos usavam um mecanismo criativo para falsificar o título da propriedade e reivindicar sua posse: colocavam o documento dentro de uma caixa com grilos, que comiam as bordas do papel e defecavam nele, para dar uma aspecto amarelado e envelhecido, como se já tivessem o papel de longa data — daí a expressão grileiro. Uma das descobertas do atual estudo, segundo Moutinho, é que os grileiros atuais estão usando o Cadastro Ambiental Rural (CAR), mecanismo do Código Florestal para regularização ambiental dos imóveis rurais.

CUMPLICIDADE DO CAR

Autodeclaratório, o CAR necessita da validação de órgãos ambientais municipais e estaduais para conferir o que foi informado pelo requerente do imóvel. Como essa verificação não avançou, invasores aproveitam o CAR para comprovar a posse fundiária.

A dinâmica de invasão costuma seguir as mesmas etapas. Primeiro, os grileiros escolhem a terra pública que querem tomar, com base na topografia da área e da proximidade de estradas. Em seguida, conseguem um grupo de financiadores, a maioria de fora da região, e que permanece com a identidade oculta. Com o dinheiro em mãos, derrubam a floresta e colocam fogo para limpar a área e facilitar o preparo do solo.

Em boa parte das áreas desmatadas, a pecuária é usada para dar aparência de legalidade à invasão. Depois disso, os grileiros registram o imóvel em sistemas oficiais, com o CAR.

O esquema levou a uma ação inédita do Ministério Público Federal do Amazonas, que pediu indenização por danos climáticos contra um acusado de grilagem que teria usado o CAR para tentar legalizar a terra que havia invadido no Sul do Amazonas, no Projeto de Assentamento Agroextrativista Antimary. De 2011 a 2018, cerca de 2.400 hectares de floresta intocada que faziam parte deste projeto foram desmatados ilegalmente na área.

Na ação, o MP estimou, com base em uma calculadora de crédito de carbono desenvolvida pelo Ipam, que a devastação causou um dano climático de R$ 44,7 milhões. Em decisão liminar de abril passado, a Justiça reconheceu a existência de desmatamento ilegal e embargou a venda de gado criado na área.

RECOMENDAÇÕES

Para conter o avanço da devastação, os pesquisadores fazem uma série de recomendações no estudo, como cancelar todos os CARs sobrepostos a terras públicas, dar uma finalidade às florestas não destinadas, aumentar a fiscalização e a punição a grileiros que invadem e desmatam terras públicas, além de apoiar as ações do judiciário contra invasões.