O GLOBO, n 32.336, 17/02/2022. Mundo, p. 16
ENCONTRO NO KREMLIN
Jussara Soares
Bolsonaro diz que Putin ‘busca a paz’ e firma apenas um acordo com a Rússia
A viagem-relâmpago de Jair Bolsonaro à Rússia, de apenas um dia de atividades oficiais, foi marcada por sinais explícitos de boa relação entre ele e seu colega Vladimir Putin, que chegou a ser classificado como um “casamento perfeito” pelo brasileiro. Entretanto, apesar da troca de promessas de maior integração, apenas um acordo foi firmado entre Brasil e Rússia, sobre segurança, e sem consequências práticas para o comércio, o investimento ou o desenvolvimento dos países.
Ao contrário do que ocorreu em outras viagens internacionais, onde gafes e constrangimentos marcaram a visita do presidente —como em sua última ida à Assembleia Geral da ONU, quando defendeu tratamentos comprovadamente sem eficácia contra a Covid-19 — Bolsonaro adotou um tom moderado. Diante do chefe de Estado russo, afirmou que “busca a paz ”e que“ o caminho para a solução pacífica se apresenta ”para o conflito do país com a Ucrânia e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), a aliança militar liderada pelos Estados Unidos.
Bolsonaro foi criticado por visitar a Rússia em meio à concentração de tropas de Moscou na fronteira ucraniana, com os países ocidentais denunciando o “risco iminente” de uma invasão. Mas, em declarações em separado depois do seu encontro com Putin, o presidente brasileiro disse que, “por coincidência ou não”, parte das tropas russas começou a ser retirada da fronteira com a Ucrânia nas vésperas de sua viagem, conforme o Kremlin vem anunciando desde segunda-feira.
—A leitura que eu tenho do presidente Putin é que ele é uma pessoa também que busca a paz. E qualquer conflito não interessa para ninguém no mundo. Mantivemos nossa agenda, por coincidência ou não, parte das tropas deixou a fronteira e, pelo que tudo indica, [é] uma grande sinalização de que o caminho para a solução pacífica se apresenta no momento para Rússia e Ucrânia —disse Bolsonaro, em declaração à imprensa.
MEMES NA INTERNET
Memes disseminados por grupos bolsonaristas na internet associam a visita de Bolsonaro às indicações de um recuo russo. Desde a semana passada, Putin, que sempre negou a intenção de invadir a Ucrânia, recebeu a visita do presidente francês, Emmanuel Macron, e do chanceler alemão, Olaf Scholz.
O presidente brasileiro disse, ainda, que não tratou diretamente da crise com a Ucrânia com Putin. No trecho aberto do encontro no Kremlin, Bolsonaro disse que era “solidário à Rússia ”, sem especificar a que se referia. Aos repórteres, disse que é solidário “desde que busquem a paz”. Ele descreveu o encontro como produtivo e disse ter tido “momento de muita informalidade” com o líder russo.
— Falei para ele que o Brasil apoia qualquer outro país e é solidário desde que busquem a paz. Tem essa intenção dele. Não entramos nas questões regionais, mas falamos que o mundo é a nossa casa e Deus está acima de tudo. E os valores russos, em grande parte, estão em sintonia conosco, estão afinados com o Brasil, em especial o cristianismo e também a questão dos valores familiares.
Questionado se queria dar um recado para a Ucrânia, Bolsonaro disse que não envia“recado para ninguém ”e que é“a natureza do Brasil ser pacifista”. Ele disse não temer uma reação negativa dos Estados Unidos após a viagem à Rússia porque “o Brasil é um país soberano”.
Ainda sobre a reunião com Putin, o presidente brasileiro se desmanchou em elogios.
— Realmente, é mais que um casamento perfeito o sentimento que eu levo para o Brasil. E senti também, pela fisionomia, por aquilo que foi tratado até fora da agenda oficial, com autoridades russas, em especial o presidente Putin, que é esse o sentimento que ele também tem do Brasil.
ATUALIZAR NOMENCLATURA
O tom mais forte de sua fala foi ao tratar da Amazônia. Após a reunião entre os dois presidentes, eles fizeram uma declaração conjunta em que prometeram ampliar a cooperação e a integração entre Rússia e Brasil. O mandatário brasileiro iniciou sua fala após o encontro, ao lado de Putin, indicando que apreciou a posição de seu colega sobre a Amazônia e, saindo do roteiro, também se manifestou em favor da paz “para todos”.
— Quando alguns países questionaram a Amazônia como patrimônio da Humanidade, eu quero agradecer a sua intervenção, que sempre esteve ao nosso lado em defesa da soberania— disse Bolsonaro, em uma aparente alfinetada em líderes como o francês Emmanuel Macron e o americano Joe Biden, críticos da política do governo brasileiro para a Amazônia e que já insinuaram que o Brasil poderia perder o controle sobre a florestas e permitisse sua destruição.
Bolsonaro lembrou que Brasil e Rússia têm as duas maiores coberturas florestais do planeta e prometeu uma cooperação ambiental entre os dois países. Em declaração não prevista no roteiro, Bolsonaro falou da paz mundial.
— Pregamos a paz e respeitamos todos aqueles que agem dessa maneira. Afinal, esse é o interesse de todos nós: paz para todo mundo —afirmou Bolsonaro.
O presidente brasileiro indicou, ainda, que busca novas parcerias em diversas áreas — como gás, petróleo e derivados —e aprofundar discussões sobre exploração de águas profundas e hidrogênio, mas nenhum acordo foi anunciado na reunião presidencial.
Somente na cúpula dos chanceleres foi anunciado, pelo chanceler Carlos França, o único acordo firmado na viagem — um protocolo de emenda a um acordo sobre proteção mútua de informações classificadas entre os dois países, firmado em 2008. Em resumo, o objetivo é atualizar as definições de documentos, como reservados, secretos e ultrassecretos, de acordo com a Lei de Acesso à Informação (LAI), publicada em 2012.
Bolsonaro contou que tratou com Putin da exportação de fertilizantes para o Brasil, que é dependente da importação do produto, responsável por mais de 60% das vendas russas ao país. A declaração à imprensa ocorreu após uma reunião com empresários brasileiros e russos.
CONSELHO DE SEGURANÇA
Putin, por sua vez, lembrou laços históricos de seu país como Brasil, ressaltou iniciativas de cooperação e o desejo de aprofundar a já existente em usinas nucleares, citou o intercâmbio de estudantes e lembrou que empresas russas forneceram quase 10 milhões de toneladas de fertilizantes ao Brasil.
—Ao trocar opiniões sobre a agenda global e regional, constatamos que, sobre muitos assuntos, as posições dos nossos países são próximas ou coincidentes —disse ele. — Os nossos países defendem a formação de um mundo multipolar, com base no direito internacional e um papel central coordenador da ONU. Temos firme compromisso com os princípios do multilateralismo, resolução de conflitos por meios diplomáticos e políticos —disse o presidente russo.
O russo ainda voltou a defender que o Brasil seja membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, posição que adota desde 2014 e que consta do comunicado conjunto divulgado após o encontro. Putin afirmou também que quer avançar em outras áreas na relação bilateral.
— Com apoio do fundo russo de investimentos diretos, realizamos trabalho para a produção da vacina Sputnik no Brasil — disse ele, sobre o imunizante contra a Covid-19 cujo uso ainda não foi autorizado no Brasil.
Ao todo, Bolsonaro permaneceu no Kremlin por cerca de três horas.