VALOR ECONÔMICO, n 5413, 08, 09 e 10 de janeiro de 2022. Opinião, A10

Bagunça administrativa se junta ao populismo fiscal
 

O governo Jair Bolsonaro deu nova demonstração de amadorismo com a barafunda criada em torno do projeto de lei que criaria um novo Refis para empresas de pequeno porte e microempreendedores individuais. Mais do que a decisão de vetar integralmente o texto do parcelamento de dívidas tributárias do Simples Nacional, aprovado pelo Congresso em dezembro, causa espanto o grau de desarticulação entre as autoridades. Pode até ser algo esperado em um governo recém-empossado, não em uma administração que entra no quarto ano de mandato e pretende reeleger-se. No plano econômico, os desencontros cada vez mais frequentes entre Bolsonaro e o ministro Paulo Guedes minam o que resta de credibilidade da política fiscal.

O novo Refis - oficialmente batizado de Programa de Reescalonamento do Pagamento de Débitos no Âmbito do Simples Nacional (Relp) - permitiria a renegociação de até R$ 50 bilhões em dívida com o Fisco. O país tem hoje cerca de 16 milhões de micro ou pequenas empresas, além de MEIs, que sofreram com os efeitos da pandemia. Boa parte tem a continuidade de seus negócios ameaçada. Como sinal da crise, há quatro meses, a Receita Federal notificou 440.480 devedores do Simples com “significativo” valor pendente de regularização.

É defensável a justificativa técnica do Ministério da Economia e da Advocacia-Geral da União (AGU) para recomendar o veto - a necessidade de apontar compensação, possivelmente por meio de aumento de tributos, à renúncia fiscal acarretada pelo perdão das dívidas. O que deixa todo o panorama embaçado é a bagunça gerencial.

O projeto teve aprovação praticamente unânime dos deputados, em sua votação final na Câmara, e o governo em nenhum momento apresentou ressalvas públicas ao texto. Diante do posicionamento de seus auxiliares contra a sanção, Bolsonaro reagiu supostamente indignado na “live” semanal das quintas-feiras e aparentemente sem saber que a transmissão havia começado, desdenhando “os caras [que] queriam que eu vetasse o Simples Nacional”. Mandou os técnicos “darem um jeito” e reverterem o veto recomendado. Em vão. Um dos motivos para barrar o Refis teria sido incompatibilidade com a legislação eleitoral, que impediria novos benefícios em ano de ir às urnas.

Revelou-se que, entre a vontade política de sancionar e a sugestão técnica de vetar, o martelo foi batido às 23h36 da quinta-feira - a menos de meio-hora do limite máximo para uma decisão final. Literalmente, é isso o que dá deixar para a última hora. Foi uma atitude desnecessária. O novo marco legal das ferrovias, aprovado pelo Congresso na mesma semana do Relp, teve sanção presidencial - e vetos específicos - no dia 23 de dezembro. Tivesse se debruçado antes sobre potenciais conflitos do Refis para as micro e pequenas empresas, uma solução de compromisso talvez pudesse ter sido achada.

Assim, doses praticamente semanais de confusão vão se sucedendo, não apenas na área econômica, como se viu no recente atropelo da Anvisa sobre a vacinação de crianças e no apagão de dados da plataforma ConecteSUS. No campo orçamentário, a precipitação de Bolsonaro em sinalizar reajuste salarial para policiais deflagrou movimentos grevistas em outras corporações do serviço público e engendrou nova fonte de pressão por aumento de gastos em 2022.

Como consequência, 324 profissionais da Receita Federal entregaram seus cargos comissionados. Operação-padrão dos auditores já causa atrasos na liberação de cargas nos portos de Santos (SP), Itajaí (SC) e Pecém (CE). Servidores do Banco Central seguem pelo mesmo caminho. O funcionalismo ameaça uma primeira paralisação no dia 18. Bolsonaro abriu a caixa de Pandora.

Pressionado pela queda na popularidade, o presidente vai cedendo. Acrescenta, às trapalhadas administrativas, um mergulho no populismo fiscal. Pode-se entender dessa forma a MP 1.090, que concede abatimento de até 92% das dívidas do Fies, para pouco mais de 1 milhão de estudantes que deixaram de pagar suas prestações. O fundo de financiamento universitário tem R$ 123 bilhões a receber dos devedores e o Balanço Geral da União registrou, ao fim de 2020, ajuste para perdas de R$ 27,9 bilhões com o programa. Sem focalização, ignorando distinções entre quem poderia e quem não poderia pagar, a MP destrava a porteira para outro problema mais à frente: a judicialização dos contratos ativos por quem está em dia com o programa e se sentirá, não à toa, punido por respeitar seus compromissos.