O GLOBO, n 32.336, 17/02/2022. Saúde, p. 19

DESERTOS VACINAIS

Ana Lucia Azevedo


Falta de doses e relutância expõem cidades à Covid

Só 1% das cidades da Região Norte têm ao menos 80% da população com vacinação completa. Amazônia Legal tem nove dos dez municípios do país com menor cobertura.

A previsão do tempo para São Félix do Xingu, no Pará, hoje é de tempestade. Nada fora do padrão para a região. Anomalia é outro tipo de tempestade estacionada lá desde o ano passado: o da baixa cobertura vacinal, retrato da desigualdade no acesso à imunização contra a Covid-19 no Brasil.

O município tem o menor percentual de população vacinada do país, 15,5% com primeira dose, situação que se mantém desde novembro.

É um microcosmo da desigualdade vacinal, cujo epicentro está na Bacia Amazônica. Num momento em que estados do Centro-Sul avançam na vacinação de crianças e no reforço e já se fala até em quarta dose, estão na Amazônia Legal nove dos dez municípios com menor percentual de aplicação da primeira dose do Brasil, mostra um levantamento feito pelo GLOBO.

O levantamento se baseou em informações dos 5.570 municípios mais o Distrito Federal compiladas pelo Observatório da Covid-19, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em 6 de fevereiro, a partir da base de dados do Ministério da Saúde.

A tempestade perfeita é gerada pela combinação de falta de planejamento nacional para distribuição e operacionalização da aplicação das vacinas em regiões de população dispersa e acesso historicamente difícil, falta de campanhas de informação e negacionismo.

O resultado é a criação de desertos vacinais, onde a população desprotegida alimenta bolsões de perpetuação da pandemia, surtos e abre brechas para surgirem variantes do coronavírus.

IDH BAIXO

O denominador comum desses municípios é o baixo índice de desenvolvimento humano (IDH), além dos fatores já mencionados.

— São lugares quase sempre remotos, mas a Covid-19 chegou a todos eles. Então, a vacina precisa chegar. Cada município tem peculiaridades. Em alguns as falhas operacionais são mais importantes, em outros o negacionismo antivacina pesa mais — afirma Diego Xavier, pesquisador do Observatório Covid-19/Fiocruz.

Numa Nota Técnica de dezembro do observatório, portanto antes do apagão de dados do Ministério da Saúde, a Região Norte já figurava como a menos vacinada do Brasil.

O comunicado mostrava que só 16% dos municípios brasileiros tinham vacinação com esquema completo acima de 80%. No Sul do país, 30% das cidades tinham esse grau de cobertura. No Sudeste, eram 27,2%; no Centro-Oeste, 11,8%; no Nordeste, 2,7% e no Norte, só 1,1%.

Diego Xavier diz que desde então a situação pouco mudou e a tendência continua a mesma. São Paulo tem o maior percentual de população vacinada: 85% dos habitantes receberam a primeira dose, 80%, a segunda, e 35% foram imunizados com a terceira, segundo a Fiocruz. Já o Amapá está no fim da fila. Tem a menor taxa de vacinação com a primeira dose (58,9%), só 42,9% receberam a segunda e pífios 5,1%, a terceira.

Xavier acrescenta que dezembro de 2021 e janeiro de 2022 foram os meses com a menor quantidade de doses enviadas pelo Ministério da Saúde, superando apenas os dois primeiros meses de imunização desde o início da campanha.

— Temos padrões de vacinação da Europa e da África dentro do Brasil —diz .

A epidemiologista Carla Domingues, que esteve à frente do Programa Nacional de Imunizações (PNI) entre 2011 e 2019, considera preponderantes para a criação de desertos vacinais a falta de planejamento da Saúde, que não organizou a distribuição de imunizantes de acordo com as necessidades regionais, a falta de informação qualificada oficial para a população e o negacionismo do governo federal, que amplificou o movimento antivacina.

— A falta de comunicação oficial deixou muita gente apavorada, com um medo infundado que jamais existiu. E, pior, o Ministério da Saúde, ao abrir as portas para o movimento antivacina, empoderou o discurso negacionista e enfraqueceu a proteção da população. Isso é um estrago de longo prazo para a saúde pública. Não há boletins oficiais, não há meta. Ao contrário, há desinformação oficial —salienta Domingues.

São Félix do Xingu é mais conhecida pela combinação explosiva de pecuária e desmatamento. Tem o maior rebanho bovino do país, estimado em 2,4 milhões de cabeças. E, não por acaso, é o município brasileiro que mais emite gases do efeito estufa, segundo o Observatório do Clima.

Em sua maior parte, são emissões decorrentes do desmatamento e da pecuária, espalhados por um território de mais de 84 mil km², —é o sexto maior município do Brasil em área. Mas seus 135 mil habitantes estão dispersos numa das menores densidades demográficas do país, de apenas 1,08 hab/ km². Dois terços deles são indígenas, que vivem em aldeias onde a Covid-19 grassa e a vacina não alcança.

— Infelizmente, é uma situação dramática. O gado está vacinado, protegido contra a febre aftosa. A população humana, não. É o retrato perfeito da desigualdade. A população indígena, quilombola e ribeirinha era grupo prioritário, mas isso nunca passou de ficção. Não houve planejamento e empenho das autoridades, principalmente federais — destaca a sanitarista Ligia Bahia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Evelin Plácido, coordenadora da área técnica de imunização do Projeto Xingu, da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e presidente da regional São Paulo da Sociedade Brasileira de Imunização, afirma que aldeias inteiras e profissionais de saúde estão com Covid-19, o que dificulta ainda mais uma situação grave.

NEGACIONISMO

Plácido enfatiza que não houve planejamento na distribuição. Barcos foram enviados sem refrigeração com a vacina da Pfizer, que requer uma cadeia fria delicada.

— A vacina precisa viajar por até 15 dias em barcos precários, não há equipes suficientes, os poucos profissionais que estão lá estão sobrecarregados e quando chegam às aldeias muitas vezes ainda enfrentam o negacionismo de pastores de algumas denominações neopentecostais. Dizem que “é a Besta que está na vacina” —frisa Plácido.

Ela lembra que existia algum negacionismo em 2009, durante a vacinação contra a H1N1, mas ela foi vencida com o apoio das autoridades de saúde. Na época, pastores diziam aos indígenas que eles virariam porcos se tomassem a vacina. Hoje esse apoio desapareceu.

Antônio Eduardo Cerqueira de Oliveira, secretário executivo do Conselho Missionário Indígena (Cimi), observa que há muitas aldeias não vacinadas, não apenas na região do Araguaia-Xingu, mas em todo o país.

Procurada, a Secretaria Municipal de Saúde de São Félix do Xingu não respondeu aos pedidos de entrevista do GLOBO.