VALOR ECONÔMICO, n 5414, 11/01/2022. Especial, A10

Rumo de Estados para ‘bônus fiscal’ em 2022 é incógnita

Anaïs Fernandes e Marta Watanabe

 

Os governos regionais caminham para ter fechado 2021 com um superávit histórico e bem acima do recorde já observado em 2020, o que também deve contribuir para levar o setor público consolidado - que, além de Estados e municípios, inclui governo central (Previdência, Tesouro Nacional e Banco Central) e estatais - se não a um resultado primário positivo, ao menos a um déficit modesto. Economistas têm dúvidas, no entanto, sobre o futuro desse “bônus fiscal” dos entes federativos em 2022, em um cenário de normalização das atividades e eleição.

O Santander projeta um superávit para Estados e município de cerca de R$ 90 bilhões em 2021 (ou 1% do PIB), mas pode ser até um pouco mais, segundo o economista Ítalo Franca. “Se você comparar com toda a história, é muito acima”, afirma ele.

Pela métrica do Banco Central, que leva em conta a Necessidade de Financiamento do Setor Público (NFSP), os governos regionais tinham, nos 12 meses até novembro de 2021, um resultado positivo de R$ 104,6 bilhões, ante R$ 37,5 bilhões no mesmo período de 2020. O primeiro ano da pandemia já havia encerrado com recorde da série, mas ainda nesse patamar de R$ 39 bilhões, o mais elevado desde os R$ 33 bilhões de 2011.

Para Manoel Pires, economista do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), o principal motor das contas estaduais no ano passado foi o crescimento das receitas. No agregado, elas aumentaram, em termos reais, cerca de R$ 80 bilhões, quando se compara janeiro a outubro de 2021 com iguais meses de 2019, período anterior à pandemia. O resultado primário, no mesmo critério, avançou R$ 70 bilhões, o que parece indicar que a evolução de receitas fez bastante diferença para o superávit. Pires baseia-se nos dados do agregado dos Estados retirados dos relatórios fiscais entregues ao Tesouro, disponíveis até outubro, considerando o resultado primário “acima da linha”, isto é, a diferença entre receitas e despesas primárias.

Nesse processo de superávit forte, houve ao menos três elementos fundamentais, diz Pires. O primeiro foi a recuperação da economia após o choque da covid-19. Ela foi muito favorável para os Estados por causa do efeito de composição do PIB, que ampliou a importância de alguns setores ligados à base do ICMS, principal tributo arrecadado pelos governos estaduais. Um segundo elemento foi a inflação, muito puxada também por setores nos quais a arrecadação do ICMS é importante, como combustíveis e energia elétrica.

E houve ainda contribuições do lado dos gastos. “ há duas rubricas que puxaram muito para baixo. Uma foi a despesa de pessoal, em razão das restrições a reajustes pela Lei Complementar 173, de 2020, a mesma que estabeleceu as transferências de recursos extraordinárias para combate à pandemia a Estados e municípios”, afirma Pires. As despesas correntes também caíram de forma consistente, acrescenta.

“Foi uma ‘tempestade perfeita’ para as finanças públicas regionais em 2021. A base de arrecadação dos Estados bombou, devido a esse efeito-preço, ao passo que a despesa ficou praticamente congelada”, diz Fernando Genta, economista-chefe da XP Asset Management. Além das arrecadações sobre combustíveis e energia, ele destaca a cadeia industrial. “O preço dos bens industriais subiu bastante.”

Esse fatores positivos para o caixa de Estados e municípios, no entanto, tendem a arrefecer em 2022, segundo economistas. “Se a gente acreditar que vai ter desinflação, com a alta da Selic, as receitas tendem a cair, enquanto as despesas e os pagamentos de dívidas vão normalizando”, afirma Franca. O Santander projeta um superávit bem mais modesto para os governos regionais em 2022, de R$ 3 bilhões a R$ 5 bilhões. “Vamos sair de um nível muito alto para algo mais normal”, diz o economista do banco. Em 2019, antes da pandemia, Estados e municípios registraram superávit de R$ 15,2 bilhões, vindo de R$ 3,5 bilhões em 2018, de acordo com o Banco Central.

Além de indexadores baseados em IPCA e Selic, que sobem, o serviço da dívida dos entes com a União será maior em 2022 porque o que deixou de ser pago em juros e amortizações no ano passado - outra medida federal de socorro aos governos regionais - será incorporado ao saldo devedor a partir deste ano, lembra Pires. “É preciso saber se um número relevante de Estados terá poupança para fazer frente a essa despesa”, afirma.

Para ele, parcela do ganho de arrecadação veio para ficar. “Houve, por diversos motivos, ajustes de preços e parte dessa inflação mais alta vai permanecer, ainda que desacelere neste ano.” O que não se sabe, diz, é se os Estados vão usar essa fatia permanente de ganho de arrecadação para elevar despesas.

Se eles não usarem, esse ganho tende a se perpetuar ou, pelo menos, se tornar mais longevo. Se eles decidirem aumentar o gasto, o “bônus fiscal” que a pandemia trouxe será eliminado. “A queda de despesa corrente dos Estados é muito expressiva, provavelmente porque a pandemia interrompeu alguns serviços públicos e, num cenário de normalização, esse gasto tende a se recompor”, afirma Pires.

Uma das grandes incógnitas, segundo ele, está nos gastos com pessoal, porque essa é uma decisão administrativa e discricionária. “É preciso verificar como os Estados vão tratar a recomposição de salários. A gestão das folhas nos últimos anos foi mais apertada. Depois da crise de 2015, há uma mudança de comportamento. Alguns Estados fizeram reformas previdenciária e administrativa que também estão contribuindo para isso”, diz.

Pires acrescenta que, no plano federal, houve regulações que tentaram fechar brechas da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), com a criação de regimes de recuperação e de ajuste fiscal que atuam pelo controle de despesa de pessoal (leia abaixo).

Considerando esses fatores, Pires se diz “um pouco mais otimista” para que parte do “bônus fiscais” dos governos regionais na pandemia permaneça. “Creio que temos um sistema novo que está surgindo e que, eventualmente, pode estar dando alguns resultados”, afirma.

Para Genta, da XP Asset, a combinação de recursos na mesa com ano eleitoral deve estimular gastos dos governos regionais neste ano. “Vamos ter uma aceleração do investimento público. E também devemos ter uma onda de reajuste salarial, já vemos alguns Estados falando nisso. Uma vez que a inflação vai fechar 2021 em dois dígitos, devemos ver reajustes consideráveis também.”

Na sua avaliação, os Estados não ficaram mais austeros com a pandemia. “Foi só uma imposição legal de não poder gastar, somada a um vento de cauda super favorável na arrecadação”, diz.