Correio Braziliense, n. 22699, 14/05/2025. Política, p. 4
Rastreabilidade é essencial
Fernanda Strickland
Maiara Marinho
Danandra Rocha
Apesar dos avanços regulatórios nos últimos anos, a cadeia do ouro no Brasil ainda está sob domínio do crime organizado. Essa situação tem preocupado autoridades, especialistas e representantes do setor mineral. A extração ilegal, impulsionada pela ausência de fiscalização e pela fragilidade institucional, já devastou mais de 25 mil hectares de Terras Indígenas e outros 8 mil hectares de Unidades de Conservação, segundo dados do MapBiomas.
Esse foi um painéis que fizeram parte do CB Talks: Os desafios da agenda de minerais estratégicos para o Brasil, promovido pelo Correio Braziliense com apoio do Instituto Escolhas.
A atuação de facções criminosas na cadeia do ouro é alimentada por um sistema de comercialização permissivo e praticamente sem controle efetivo de origem. “Se em 2022 a gente tratava a questão do ouro como ambiental ou humanitária, ela não é mais. A questão do ouro no Brasil é um tema de segurança pública”, afirmou Frederico Bedran, presidente da Comissão de Direito Minerário da OAB-DF. “Hoje, 80% do ouro produzido no Brasil vai para o mercado paralelo. E 80% disso vai para o crime organizado”, destacou.
A crise no setor, segundo os especialistas, é reflexo, também, do enfraquecimento de órgãos fiscalizadores como o Ibama, ICMBio, ANM e Funai, especialmente durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro. O garimpo ilegal se espalhou, causando tragédias como a vivida pelos Yanomami. Em janeiro de 2023, eles enfrentaram surtos de malária, desnutrição e morte em decorrência da presença de garimpeiros ilegais em suas terras.
Bedran recordou que, no caso dos Yanomami, a preocupação não é apenas com o ouro. “O que mais nos assustou não é só ouro, é cassiterita”, afirmou, mencionando também o garimpo ilegal de cobre, manganês e lítio.
Concorrência
A atual legislação, especialmente a derrubada da presunção de boa-fé na comercialização do ouro pelo STF, é considerada uma conquista no combate à mineração ilegal. “Foi uma vitória importante”, destacou o secretário nacional de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, Marivaldo Pereira.
Mas o representante do governo federal reconhece problemas. “Construir uma política pública leva anos, mas destruí-la pode acontecer com uma canetada”, lamentou. O secretário acrescentou que a disparidade regulatória no setor cria um ambiente hostil para os empreendimentos legais. “Como as empresas que agem dentro das regras vão competir com o crime organizado?”, questionou.
Ele ressaltou também o problema comércio ilegal de minérios nas cidades brasileiras. O país enfrenta uma onda de furtos de cabos em áreas urbanas, o que reforça a necessidade de criar mecanismos para identificar na cadeia produtiva do cobre a origem do material comprado.
“Isso reduziria o mercado ilegal e desestimularia o roubo. A pena por si só não resolve. É preciso pensar soluções para o controle e rastreabilidade do cobre”, disse o secretário.
O avanço do crime organizado no setor de mineração ocorre é agravado pela precariedade dos órgãos reguladores. A Agência Nacional de Mineração (ANM), por exemplo, conta apenas com 140 fiscais para monitorar mais de 40 mil frentes de lavra em todo o país. Para fiscalizar a arrecadação da Cfem (Compensação Financeira pela Exploração Mineral), são apenas três servidores.
Sistema ineficiente
Mauro Henrique Sousa, diretor-geral da ANM, criticou a estrutura atual e alertou: “Não vamos dar conta dessas mazelas com a estrutura atual. Temos que buscar soluções conjuntamente”. Ele também denunciou o atraso histórico na demarcação de terras indígenas e a ausência de um sistema robusto de rastreabilidade do mineral, crucial para separar o legal do ilegal.
O governo federal aposta agora no avanço do Projeto de Lei 3025/2023, que propõe normas de controle da cadeia do ouro, mas enfrenta resistência no Congresso. Para Marivaldo Pereira, não se trata de criminalizar a atividade garimpeira, mas de criar regras claras para coibir abusos e retomar o controle estatal. A solução, segundo ele, passa pela união entre governo, Legislativo, setor empresarial e sociedade civil.
Embora reconheçam avanços — como a exigência da nota fiscal eletrônica e o fim da presunção de boa-fé — especialistas avaliam que é preciso ir além para enfrentar a sofisticação do crime. Frederico Bedran defendeu a implementação de um sistema completo de rastreabilidade, com marcação física, digital e geoquímica. “Nos últimos dois anos, o governo fez várias ações, apertou vários botões. Mas não foram suficientes”, ponderou, para depois completar: “Vejo, hoje, o tema da rastreabilidade como o último botão que a gente tem que apertar para isso funcionar.”