VALOR ECONÔMICO, n 5415, 12/01/2022, Brasil, A7
Fiocruz está perto de autossuficiência da vacina de covid-19
Gabriel Vasconcelos
O Brasil está perto da autossuficiência na produção de vacinas contra a covid-19. A inclusão da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) como produtora do Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA) no registro brasileiro da vacina desenvolvida pela parceria anglo-sueca Oxford/ AstraZeneca, na sexta, abriu o caminho para a entrega de doses 100% fabricadas no país, o que está previsto a partir de fevereiro.
Ao Valor o diretor do Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos da Fiocruz (Bio-Manguinhos), Maurício Zuma, afirmou que a fábrica da fundação tem capacidade para produzir IFA equivalente a 180 milhões de doses até o fim desse ano e, a partir de 2023, o equivalente a 300 milhões de doses por ano. A capacidade de produção prevista para 2022 é mais do que o total encomendado pelo governo federal, de 120 milhões de unidades a serem entregues até junho.
Segundo Zuma, é confortável a posição da Fiocruz para honrar os compromissos com a União. Diante da incerteza sobre o tempo para a liberação pela Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa), a fundação decidiu, no fim de 2021, importar carga extra de IFA da China, que vai cobrir o envase de 60 milhões de doses até junho. Assim só será exigida da fábrica de IFA nacional quantidade equivalente a mais 60 milhões de doses. Excedentes podem servir a novas encomendas do Ministério da Saúde ou serão exportados para países vizinhos via consórcio Covax Facility, da ONU.
Ainda não está clara a necessidade de vacinar a população periodicamente contra a covid-19, o que depende da duração dos anticorpos estimulados pela vacina. Israel aplica uma quarta dose para profissionais da saúde, idosos e imunodeprimidos. Se o mundo andar nessa direção, o Brasil sai na frente: ainda vai depender de insumos farmacêuticos básicos fabricados no exterior, sobretudo na Índia, mas não precisará disputar IFA pronto em um mercado internacional congestionado e com dificuldades logísticas ligadas a surtos de covid-19 como o atual, diz Zuma.
Outro aspecto são os custos. Cada vacina fabricada na Fiocruz é repassada ao governo por US$ 6 a unidade e pode chegar a menos de US$ 5,50. O valor é de US$ 5 a US$ 10 inferior ao cobrado pelas vacinas de laboratórios privados. “Em 2021, o governo federal deve ter economizado R$ 5 bilhões ao contar com as 150 milhões de doses entregues pela Fiocruz. A economia será maior à frente.”
Zuma diz que a Fiocruz possui IFA nacional estocado para produzir 15 milhões de doses e carga em diferentes etapas de fabricação para produzir mais 6 milhões de vacinas a curtíssimo prazo. A fabricação desse ingrediente, diz, se dá em duas linhas de produção e passa por um processo de escalonamento que deve chegar ao auge em “dois ou três meses até abril”.
A velocidade do processo se mede pelo intervalo entre o início de fabricação de novos lotes, que foi de 15 dias, caiu para sete e deve chegar a quatro dias. Nesse ritmo o Brasil será capaz de fabricar oito lotes de IFA, o equivalente a 15 milhões de vacinas por mês de forma independente. Em meados do ano, a Fiocruz planeja substituir os biorreatores finais de cada linha, hoje de mil litros, por outros com o dobro da capacidade, o que elevaria a produção mensal de IFA a uma quantidade suficiente para 30 milhões de doses por mês no segundo semestre. Como a fábrica só funciona dez meses por ano, considerando manutenções, a fundação mira o quantitativo de 180 milhões de doses prontas este ano.
O professor de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo Marco Antônio Stephano disse ao jornal, em março de 2021, que a entrega dos primeiros lotes de IFA nacional, previstos pela Fiocruz para outubro, tinham atrasado quatro meses. Isso aconteceu em função da demora na assinatura do contrato de transferência tecnológica com Oxford/AstraZeneca, que envolvia a negociação de royalties e houve ainda demora nas liberações do registro pela Anvisa. Tudo aconteceu em cerca de um ano, tempo considerado recorde pelo setor para um processo complexo.
“Uma transferência de tecnologia dessa envergadura pode demorar dez anos ou mais”, diz. Outros países, como o México, importam vacinas prontas e só há pouco tempo dominaram o processo de envase, que o Brasil faz desde 2021. O Brasil é o único país com transferência tecnológica realizada, enquanto outros fabricantes de IFA, casos de Índia, China e Coreia do Sul, têm contratos de manufatura terceirizados (CMO, em inglês), que permitem a produção local do insumo a pedido da AstraZeneca. A diferença é que o governo brasileiro pode solicitar a expansão da produção conforme sua necessidade sem fazer nova negociação.
O contrato com a AstraZeneca prevê pagamento de royalties e serviços de assistência técnica, que a Fiocruz não precisa mais. A produção, diz Zuma, é autônoma e os contatos com a farmacêutica devem se limitar a eventuais melhoramentos na vacina. O contrato prevê que qualquer atualização da vacina para contemplar novas variantes do vírus seja repassada à Fiocruz e vice-versa. O mesmo vale para formulações em volume de vírus diferentes, como é o caso da vacina infantil, a qual ainda não tem previsão no caso deste imunizante.
Já o contrato inicial da encomenda tecnológica, no fim de 2019, que garantiu a importação do IFA, exigiu o pagamento de R$ 1,3 bilhão ao laboratório estrangeiro. A verba total para vacina contra covid-19 repassada pela União à Fiocruz foi de R$ 1,9 bilhão. Desse total, mais de R$ 100 milhões serviram à compra de equipamentos, e R$ 540 milhões, para o custeio da operação.