VALOR ECONÔMICO, n 5415, 12/01/2022, Especial, A14

Vacinação continua desigual no mundo, o que é “perigoso”

Assis Moreira

 

O Covax, mecanismo global para distribuição equitativa de vacinas contra a covid-19, já tem 1,6 bilhão de doses alocadas para países em desenvolvimento neste ano. Isso depois dos atrasos na distribuição no ano passado, por causa de “comportamento pouco exemplar” de países ricos e de grupos farmacêuticos. Fabricantes deram prioridade a países que pagavam mais pelas vacinas. Ao mesmo tempo, alguns países impuseram restrições à exportação de doses.

É o que diz José Manuel Durão Barroso, presidente do conselho da Gavi, a Aliança Global de Vacinas, que lidera a coligação do Covax junto com a Cepi (Coalizão para Inovações em Preparação para Epidemias), Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Unicef - e presidente do conselho do banco Goldman Sachs International.

“A equidade de vacinas é um problema moral, e também um problema de capacidade de por fim à pandemia.”

Ex-presidente da Comissão Europeia (2004-2014) e ex-premiê de Portugal (2002-2004), Barroso foi nomeado para a presidência do Gavi em razão de sua experiência e influência na cena internacional. Ele constata que a desigualdade na imunização continua elevada, mas nota que o plano do Covax é de em 2022 atingir a vacinação de 40% da população global, pelo menos.

Para Barroso, a questão da distribuição das vacinas permite ver como está a ordem mundial, e o que se vê é muita incerteza e imprevisibilidade, que vêm tanto da pandemia como de riscos econômico-financeiros e geopolíticos.

Ao abordar temas econômicos, ressaltou que falava de forma pessoal. Ele vê boas perspectivas para a retomada global, mas considera que a inflação veio para ficar, na esteira de questões como a transição energética, e que o aumento das taxas de juros é inevitável. Nesse cenário, países emergentes terão mais dificuldades.

“No mundo, estamos a viver situações de total imprevisibilidade do ponto de vista geopolítico e econômico.”

Ele não esconde o apego ao Brasil. Seu pai nasceu e viveu no Brasil até os 20 anos, e ainda tem familiares no país. Barroso elogia a reação da sociedade brasileira à vacinação anticovid “apesar de alguns sinais políticos contrários”. Leia os principais trechos da entrevista:

Valor: Há uma nova onda de covid-19. O sr. foi infectado?

José Manuel Durão Barroso: Eu não. Muita gente perto de mim teve, mas eu não tive. O que não quer dizer que não venha a ter, porque agora o crescimento da ômicron é exponencial, e tem muita gente infectada. Faço testes com regularidade.

Valor: O sr. é presidente do conselho da Gavi. A expectativa do Covax era de distribuir dois bilhões de doses aos países em desenvolvimento em 2021, mas parece que ficou em 790 milhões. O que deu errado?

Barroso: Houve atraso, mas os números são bastante melhores, porque em dezembro houve uma melhora. Foram entregues mais de 967 milhões de doses de vacinas para 144 países. Desses, 91 países são de baixa renda, que receberam as vacinas gratuitamente, e 87% das doses foram entregues pelo Covax. Os demais 53 países pagaram pelas suas doses, como foi o caso do Brasil. Agora temos 1,6 bilhão de doses alocadas, a serem distribuídas. Houve realmente atrasos por causa de restrições de exportações em alguns países, problemas armazenamento excessivo de doses por parte de alguns países e também atrasos na produção - alguns, aliás, também provocados pelas restrições à exportação. Por vezes, envolvia apenas um componente da vacina, mas sem esse componente não se podia concluir a vacina. A vacina não é um produto, é um processo, que envolve às vezes muitas dezenas de países. E houve também alguns atrasos do ponto de vista regulatório.

É verdade que o objetivo inicial era muito ambicioso, mas estou orgulhoso dos resultados. O número que você mencionou era o número que envolvia todos os 190 países do Covax. Acontece que, desses, os que tinham capacidade de negociar diretamente com os laboratórios o fizeram. Nosso objetivo era nos concentrarmos nos países mais vulneráveis e, nesse caso, fizemos um bom resultado, porque conseguimos cobrir cerca de 20% da população em média nos países em desenvolvimento nos quais conseguimos chegar.

Há problemas que não podem ser ignorados. Mas o Covax é o maior mecanismo da história multilateral, não apenas em número de distribuição de vacinas, mas também em termos de complexidade logística. Na história nunca aconteceu um esforço logístico e financeiro tão grande em termos multilaterais como agora. Foi uma pena que nem todos colaboraram como deviam. Houve meses terríveis, em que tínhamos o dinheiro, mas não tínhamos as vacinas, porque países suspenderam a exportação, como no caso da Índia, de onde vinha grande parte das vacinas e que, por causa da pandemia, tiveram de concentrar as doses lá. E outros países aplicaram restrição parcial ou total à exportação.

Houve também uma certa falta de transparência de alguns fabricantes, que deram prioridade àqueles que pagavam mais [pelas vacinas]. O conceito da Gavi e do Covax é comprar as doses em nome de um grande número de países e, com isso, consegue-se os melhores preços. Mas a verdade é que depois os fabricantes deram prioridade a países que pagaram mais. Nem tudo correu bem, mas penso sinceramente que o conceito do Covax está correto. Nem sempre os governos e alguns fabricantes deram os melhores exemplos em termo de comportamento.

Valor: Ou seja, alguns governos e fabricantes prejudicaram a distribuição equitativa da vacina?

Barroso: Em termos equitativos, sim. Ao mesmo tempo, devo ser justo. Países doadores deram grande ajuda. Essas doses que demos aos países em vias de desenvolvimento foram pagas por países ricos. Os EUA deram US$ 4 bilhões. Durante algum tempo os EUA, para defesa da vacinação nacional, suspenderam as exportações, mas deram os US$ 4 bilhões. E depois os países procuraram compensar esse fato com a doação de doses. É um quadro misto. Houve sem dúvida da parte dos governos em geral uma noção clara de dar prioridade à sua população, às vezes até suspendendo ou impedindo as exportações, mas também houve generosidade com o financiamento ao Covax e depois eles distribuíram doses que tinham em excesso.

Valor: No entanto, no fim de 2021 países do G20 tinham 100 milhões de doses não utilizadas, com risco de perder a validade.

Barroso: Foi por isso que eu, o diretor-geral da OMS e outros fizemos apelos veementes aos países ricos para que não deixassem estragar as doses. Às vezes, as doses nos eram dadas muito em cima do seu limite de validade. Para o Covax fazer chegar as vacinas aos países, tem que ter a compra, depois os países que aceitam e estão disponíveis para aplicá-las. Em seguida, tem acordos de indenização e responsabilidade, que precisam ser assinados. Depois vem a parte logística, como fretar os aviões. Tudo isso demora tempo. Se nos dizem com uma ou duas semanas de antecedência [que vão doar as doses], não há tempo para fazer chegar as vacinas até o final da sua validade. Mas a situação está melhorando. Se nos derem dez semanas, com os acessórios anexados, conseguimos colocar as vacinas em qualquer parte do mundo.

Valor: Mas a desigualdade na distribuição continua elevada…

Barroso: Sim. E aquele mantra que você ouve sempre, de que ninguém está seguro até todos estarmos seguros, não é apenas um slogan. É porque, enquanto não controlarmos essa epidemia, aumenta a probabilidade de haver mais variantes e de haver variantes mais transmissíveis, ondas mais perigosas de contaminação e mais mortíferas. A ômicron hoje em dia está provada que é muito mais transmissível que as variantes anteriores e surgiu numa área do mundo onde a vacinação está atrasada, que é a África. Não podemos ter complacência, apesar de as notícias indicarem que essa variante é menos mortífera. A questão da equidade de vacinas é um problema moral, mas também é um problema de capacidade para de fato por fim à essa pandemia.

Valor: O ACT-Accelerator, iniciativa internacional para produção de vacinas contra a covid, previu que, se a desigualdade na vacinação persistir, poderá resultar em 5 milhões de mortes a mais neste ano. O Gavi tem projeções sobre isso?

Barroso: Oficialmente já morreram 5,46 milhões de mortes diretamente pela covid-19. Agora, eu tenho dificuldade a fazer esse modelo sobre qual será, no futuro, o custo do atraso [da imunização]. Pessoalmente tenho muitas dúvidas sobre modelos de previsão do futuro. Mas é verdade que vai aumentar, porque quanto mais demorar o controle da pandemia, maior a possibilidade de mais infecções, sobretudo dos mais vulneráveis, e aumenta o número de mortes. Quanto ao objetivo [internacional] de vacinar 70% das populações até metade do ano, é uma aspiração. Depende de cada país. O objetivo mais concreto do Covax para 2022 é vacinar 40% da população global, achamos que isso é realista, com os recursos que temos, mas varia muito de país a país. Mas os países também distribuem vacinas entre si, há doações bilaterais e com tudo isso pode ser que se chegue aos 70%.

Valor: Gavi considera o cenário de se chegar à imunidade de grupo?

Barroso: Como você sabe, não sou especialista em vacinas, mas pela posição que ocupo estou em contato com os melhores cientistas do mundo. Eles dizem que é possível que, sendo tão transmissível, a ômicron venha a substituir as outras variantes, como a delta. E como se pensa que é menos mortal, vai levar a que as pessoas criem suas próprias defesas. Mas os cientistas não gostam do termo imunidade de grupo. Pensam que a pandemia pode se transformar progressivamente em doença endêmica, com a qual vamos ter de conviver, mas que vai levar possivelmente a uma vacinação regular, como acontece com outros vírus.

Mas tem havido muitas oscilações, e não apenas na pandemia. No mundo, estamos a viver situações de total imprevisibilidade do ponto de vista geopolítico e econômico. Veja a situação no Cazaquistão, um dos maiores produtores de energia do mundo, em que a população reage por causa do preço [do gás]. Temos situações em que a regra é a incerteza. Nesse sentido, não se pode falar de normalização sobre a pandemia, porque a situação não está normalizada.

Valor: Qual é a situação do Brasil hoje na Gavi?

Barroso: O Brasil recebeu 13,89 milhões de doses de vacinas pelo Covax, mas não mais porque é um país com capacidade de produção e também de fazer seus próprios contratos de compras. O Brasil conseguiu uma taxa de vacinação bastante boa comparando com países do mesmo nível de desenvolvimento, apesar de alguns sinais políticos contrários que foram dados. Talvez eu não seja totalmente isento, pelas minhas fortes ligações com o Brasil, mas acho que o Brasil tem condições para ser um grande líder global nas respostas às pandemias, pela sua dimensão, experiência, fabricante de vacinas. O país mostrou que a população brasileira, mesmo com sinais contraditórios do ponto de vista político, acredita na vacinação. O Brasil pode ter papel de liderança também, se quiser, em questões climáticas, pois é o país mais rico do mundo em biodiversidade. Há condições para o Brasil projetar sua influência numa causa boa, positiva, que é útil para sua população e que é útil para a imagem do Brasil no mundo.

Valor: Mas para isso seria preciso ter um novo governo no Brasil?

Barroso: Eu não voto no Brasil, não vou entrar em discussão de política interna. A longo prazo o que interessa são as sociedades, qual a capacidade de resiliência, qual é a cultura dominante da sociedade. E desse ponto de vista o Brasil mostrou essa vitalidade [com a taxa de vacinação]. Compete aos brasileiros decidir o que querem como caminho. Mas, falando do ponto de vista internacional, acho que há um papel importante que o Brasil, se quiser, pode desempenhar.

Valor: A imagem internacional do Brasil se deteriorou muito?

Barroso: Não posso fazer comentários de política interna até pelas funções que tenho, em que trabalho com todos os países. O que posso dizer é o seguinte: o Brasil é uma das maiores economias do mundo, é membro do G20, é o maior da América Latina. Para além da conjuntura - de quem possa estar no governo - o Brasil é um país que tem uma certa autoridade no mundo. Vou dizer mais, o Brasil é considerado um país específico, não tem conflitos abertos praticamente com ninguém. Há outros países mais poderosos que o Brasil, mas que são controversos, por estarem envolvidos em guerras. Independente de quem está ou não no governo, o Brasil tem um “goodwill” [boa imagem] internacional que é superior à maior parte dos países do mundo, continua a ter esse capital e se souber e quiser utilizá-lo, pode também no multilateralismo ser um parceiro de primeira grandeza. Sobre a situação interna, cada um tem sua opinião. Veja nos EUA, também as opiniões se dividem. Há quem ache que o anterior presidente [Donald Trump] foi um bom presidente e outros que foi um desastre total.

Valor: Sobre a economia mundial, como o senhor vê as perspectivas para 2022?

Barroso: Nossas expectativas e as de economistas com quem eu tenho contato, são boas. Essa pandemia é diferente da crise financeira de 2008-2012, que começou nos EUA com a crise do subprime [financiamento imobiliário de alto risco] e depois na Europa com a crise da dívida soberana. Do ponto de vista econômico foi mais difícil sair dela, porque afetou o coração do sistema financeiro e econômico global. Agora é diferente, na medida em que é uma crise que tem uma causa exógena, de saúde pública. Desde que ela seja controlada ou significativamente mitigada, há condições para a economia voltar. É o que os mercados refletiram em 2021. Os mercados tiveram momentos difíceis, mas no essencial mantiveram-se bastante positivos. As nossas previsões são de crescimento importante nos EUA, na Europa, nas economias mais desenvolvidas, talvez um crescimento menor que o habitual na China mas que faria inveja a muitos. Não houve capacidade de destruição no sistema financeiro.

Houve uma espécie de parada, mas as coisas estão prontas para reativar a economia global. No turismo, por exemplo, desde que as pessoas tenham a sensação de que a pandemia está ultrapassada, o consumo voltará rápido. Mas é preciso controlar a pandemia. Há alguns dias conversei com a diretora-gerente do FMI, Kristalina Georgieva - que foi comissária europeia durante cinco anos, quando eu presidi a Comissão Europeia -, e ela disse que mais importante que o estímulo fiscal ou monetário são as vacinas. É com a vacina que a sociedade voltará ao normal. É preciso dizer também que grande parte de [problemas evitados] foi graças a ação das autoridades…

Valor: Os governos gastaram US$ 11 trilhões…

Barroso: Por exemplo na Europa. Quando eu era o presidente da Comissão Europeia, na crise financeira fizemos um apelo aos países membros para aceitarem a mutualização da dívida, os chamados “zero bonds”. Na época, a minha querida amiga Angela Merkel disse que “só por cima de meu cadáver”, mas agora aceitou. A Comissão Europeia está levantando € 750 bilhões para ajudar as economias europeias. Portanto, nas crises os governos estão prontos a tomar decisões que em condições normais não tomariam.

Valor: A pandemia pode ter acabado com a era da baixa inflação?

Barroso: A meu ver - e essa é uma opinião pessoal - acho que a inflação veio para ficar. É um assunto que parece ser talvez um pouco subestimado. Porque as causas estruturais da inflação não tem a ver só com a pandemia ou com a injeção maciça de estímulos. Tem a ver também com problemas de transição energética, do investimento que vai ser feito, do custo da energia que está subindo muito. A pressão vai aumentar também com aumentos dos salários. Os economistas se dividem, uns dizem que a inflação é temporária. Ora, tudo é temporário, mas por quanto tempo? A inflação em si pode não ser um problema. O Banco Central Europeu tem meta de inflação perto de 2% e andou muito tempo vendo como chegaria lá. Agora, parece claro que há pressões inflacionárias fortes e que vamos ter mais cedo ou mais tarde aumento na taxa de juro. Já vemos anúncios nos EUA, no Reino Unido e a própria Europa vai ter de fazê-lo, esperamos que não cedo demais porque talvez seja um problema para a economia. A tendência é claramente nesse sentido.

Valor: E com impacto ruim para emergentes como o Brasil…

Barroso: Há alguns riscos para os emergentes. Há situações difíceis de explicar, como a que vive a Turquia. E há as inquietações geopolíticas, não só do aumento das tensões entre China e EUA, que vão continuar, mas também na fronteira leste da Europa com a situação Rússia-Ucrânia. Tudo isso lança incertezas. Eu diria que do ponto de vista dos investidores a nível global, as maiores preocupações são, além da pandemia, dúvidas de natureza geopolítica e o aparecimento da inflação que pode gerar aumentos das taxas de juros. Razão pela qual eu disse que estávamos numa situação de grande incerteza, e temos que nos habituar a viver com essa incerteza.

Valor: Aonde nos levará essa deterioração da relação EUA-China?

Barroso: Há diferenças profundas entre EUA e China e elas vão continuar, em termos ideológicos e de competição ao nível global. Não vou dizer ingenuamente que espero que elas se acabem. O que podemos esperar é que essa competição não se transforme em confrontação. Competição é normal, e ela sempre ocorreu entre potências, sobretudo entre aquelas que estão a subir e aquelas que acham que estão a descer. A questão, para a humanidade em geral, é tentar evitar que isso se transforme numa confrontação tão aguda que leve ao “decoupling” [deslocamento], que é criar duas ordens mundiais, cada uma liderada por um polo. Vamos pelo menos tentar manter uma ordem multilateral com sistema de comunicação que permita que não haja disrupção. Porque hoje em dia o potencial militar que existe é exponencialmente maior do que na Segunda Guerra Mundial. A paz deve ser o objetivo a nível mundial. Ou seja, vamos tentar limitar os estragos, não só lutar contra a pandemia, contra as alterações climáticas, mas também tentar manter uma ordem econômica aberta, um sistema multilateral de comércio, uma certa estabilidade no sistema financeiro global, lutar contra o terrorismo. Há uma série de objetivos, que se houver inteligência e sabedoria, é possível que políticos e diplomatas consigam manter uma sociedade minimamente previsível e organizada.