VALOR ECONÔMICO, n 5416, 13/01/2022, Especial, A12
Na China, colapso da Evergrande abala toda a economia
Sun Yu e Tom Mitchell
No mês passado, o Conselho de Estado da China, o órgão mais poderoso do governo, disparou sua ira contra as autoridades de um condado de apenas 660 mil habitantes, acusando-as de extorquir empresas do setor privado.
Numa declaração emitida em 17 de dezembro, o Conselho disse que o governo de Bazhou, a 90 km ao sul de Pequim, na província de Hebei, violou gravemente ordens do governo e do Partido Comunista (PC) chinês ao cobrar uma série de taxas de pequenas e médias empresas para compensar a queda da receita fiscal e venda de terrenos.
Assim como muitas governos locais do país, Bazhou foi duramente atingida pela repressão iniciada pelo PC há um ano contra incorporadoras imobiliárias altamente alavancadas, como a China Evergrande, um gigante que claudicou por meses antes de cair em default, em 6 de dezembro, e entrar num processo reestruturação.
Segundo o Conselho, em outubro a prefeitura de Bazhou ordenou a autoridades que arrecadassem 300 milhões de yuans em novas receitas, principalmente pela imposição de taxas e multas arbitrárias. Em nove semanas, mais de 2.500 empresas locais foram multadas, somando 67 milhões de yuans, ante apenas 6 milhões de yuans em multas arrecadados nos primeiros nove meses do ano.
“Todos as áreas do governo têm maneiras de compensar receitas perdidas”, diz Martin Li, que dirige uma empresa química em Bazhou e foi obrigado pela agência meteorológica local a comprar para-raios de um fornecedor indicado pelo governo e que custou 1.100 yuans, enquanto modelos similares custam 200 yuans na internet.
O Conselho de Estado disse que, ao visar empresários como Li, Bazhou “prejudicou seriamente os interesses de pequenas empresas, afetando gravemente o ambiente de negócios e minando a credibilidade do PC e do governo central”.
Mas o Conselho nada disse sobre as políticas que levaram à corrida desesperada por receitas.
Nos últimos dois anos o presidente Xi Jinping lançou uma série de campanhas voltadas para diferentes áreas de negócios - das maiores plataformas de tecnologia do setor privado, no fim de 2020, até instituições de ensino e a gigante dos aplicativos de transporte Didi, no terceiro trimestre do ano passado. E tudo isso antes de ficar aparente, em setembro, que os limites ao endividamento impostos pelo governo à Evergrande poderiam derrubar a companhia.
A segunda maior incorporadora imobiliária do China está agora prestes a se tornar o maior caso de falência do país, e suas consequências provocaram uma ampla crise no setor imobiliário. A empresa acumulou passivos de 2 trilhões de yuans, equivalentes a 2% do PIB chinês, que são devidos a credores que vão de indivíduos, que compraram produtos de investimento de alta rendimento, às maiores construtoras e bancos do país.
O impacto coletivo dessas ações disciplinares foi uma pressão inédita sobre alguns dos maiores empregadores do país - governos e empresas que contribuem para o crescimento econômico.
Em público as autoridades insistem que tudo está correndo conforme o previsto. Em abril, o Politburo (órgão máxima do PC) disse que a forte recuperação da China da pandemia apresentava uma “janela de oportunidade” para enfrentar desafios estruturais críticos. Também observou que a economia chinesa caminhava para superar a meta de crescimento de mais de 6% no ano. As várias ações disciplinares de Xi são justificadas pelas autoridades como necessárias, parte de uma campanha maior do PC para eliminar riscos financeiros que podem explodir se não forem sanados, erradicar a desigualdade de renda crônica e alcançar a “prosperidade comum”.
Mas crescem os sinais de alerta, de tensões financeiras em lugares como Bazhou a dados econômicos importantes. O PIB da China cresceu 4,9% ao ano no terceiro trimestre, e só 0,2% em base trimestral, ante 7,9% e 1,3%, respectivamente, no segundo trimestre.
Isso levanta a questão de se, enquanto Xi busca um inédito terceiro mandato como líder do PC e do governo, no fim deste ano, as consequências de sua campanha de prosperidade comum não estariam saindo de controle.
“Pequim está descobrindo os custos enormes de corrigir os desequilíbrios num setor no qual há muito confiava para sustentar o crescimento, aumentar a receita dos governos locais e contribuir para o acúmulo de riqueza das famílias”, diz Eswar Prasad, ex-diretor da divisão China do Fundo Monetário Internacional (FMI) e hoje na Universidade Cornell. “A influência do setor imobiliário sobre quase todos os aspectos da economia, mercados financeiros e sociedade faz com que essa seja uma questão muito difícil de resolver.”
Estima-se que o setor imobiliário chinês responda por 30% do PIB chinês. Em 2020, os governos provinciais e municipais captaram 8,4 trilhões de yuans com vendas de terrenos, soma responsável por um terço de sua arrecadação total.
Um assessor de política pública do governo disse que a aparente tranquilidade das autoridades com o quadro econômico camufla um crescente nervosismo a portas fechadas. “Em particular perguntam sobre o desaquecimento do setor de imóveis residenciais, a alta dos níveis de endividamento e a desaceleração do crescimento.”
Os principais problemas estão todos inter-relacionados: dívida, finanças dos governos regionais e locais, preços dos imóveis residenciais e consumo. Qual deles deve ser resolvido primeiro? A pressão tem vindo de muitas direções.”
Até agora os assessores econômicos de Xi, liderados pelo vice-premiê Liu He, têm sido contidos na resposta política ao colapso do setor imobiliário e ao desaquecimento da economia. No mês passado o banco central chinês cortou sua taxa de juros básica para clientes com menor risco de crédito pela primeira vez desde o início de 2020, mas apenas em 5 pontos-base, e deixou inalterada outra taxa usada para o crédito imobiliário.
A reunião de planejamento econômico realizada pelo partido no fim do ano reiterou que o governo continuará a se abster de dar “enxurradas de estímulos”, além de prosseguir com a luta contra “a expansão desordenada do capital” - expressão usada pelo partido para se referir às várias medidas restritivas contra empresas privadas - e contra a especulação e a alta alavancagem no setor imobiliário.
Essas promessas dão pouco alívio às autoridades locais que têm de arcar com o impacto das políticas de Xi. Em particular, e por vezes em público, argumentam que estão lidando com uma crise que não foi provocada por elas e que estão fazendo o máximo sob circunstâncias cada vez mais difíceis.
O declínio do mercado imobiliário custou caro às economias provinciais e municipais”, diz uma autoridade de Shijiazhuang, capital da província de Hebei, que pediu para não ser identificada. “Pequim diz que temos de manter o governo em pleno funcionamento. Mas, se as vendas de terrenos continuarem a cair, teremos problemas para fechar as contas”, acrescentou. De janeiro a novembro, a arrecadação local com a venda de terrenos caiu quase 30% ante igual período de 2020.
A autoridade acrescentou que ele e seus colegas servidores públicos, que geralmente ganham cerca de 5 mil yuans por mês, estão pagando um preço pessoal. “Pela primeira vez na história cancelamos nossas bonificações anuais de 10 mil yuans”, diz a autoridade. “Isso é muito dinheiro para nós. Nossos salários não são altos.”
Avaliando o prejuízo. O impacto da crise da Evergrande está sendo sentido em todo o país: a incorporadora tem quase 800 projetos em mais de 230 cidades.
Em Bazhou, os efeitos das medidas restritivas de Xi sobre o setor imobiliário já eram sentidos meses antes de setembro, quando ficou evidente que a crise da dívida da Evergrande poderia ser fatal.
No primeiro semestre de 2021, a arrecadação do país com vendas de terrenos despencou 90% na comparação anual. “O mercado de terrenos tem se mostrado sistematicamente fraco”, disse Meng Xianguo, diretor do departamento financeiro de Bazhou em agosto. “As incorporadoras estão adotando a postura de esperar para ver e estão relutantes em comprar terrenos. Houve, além disso, mais fracassos de leilões de terrenos devido à falta de recursos das incorporadoras.”
Autoridades partidárias provinciais e municipais e desses governos também reclamam que são elas, e não seus superiores de Pequim, que têm de arcar com a conta, cada vez mais elevada, gerada pelo colapso da Evergrande. Wei He, analista da consultoria Gavekal Dragonomics, de Pequim, observa que, quando o governo central diz que todas as residências já pagas têm de ser entregues a seus compradores, “essa responsabilidade recai, em última análise, sobre os governos provinciais e municipais, que poderão ter de pagar a construção do próprio bolso se as construtoras não conseguirem”.
Em Huaihua, uma pequena cidade na província de Hunan, o departamento de finanças municipal emprestou 50 milhões de yuans à subsidiária local da Evergrande para ajudá-la a concluir projetos.
A situação foi complicada pela ampla divergência entre as avaliações dos ativos do grupo nas províncias e municípios, segundo discussões transcritas de uma reunião interna do governo a que o “Financial Times” teve acesso. Lu Anzhi, autoridade de alto escalão do departamento de habitação de Huaihua, disse que a Evergrande avaliou seus ativos na cidade em 850 milhões de yuans, enquanto a avaliação de terceiros era de menos de metade desse valor.
Em Changsha, capital da província de Hunan, as autoridades disseram que podiam pagar empreiteiras para concluir uma dúzia de projetos inacabados da Evergrande - mas não tinham recursos para zerar as dívidas da incorporadora de obras anteriores.
“Esperamos que vocês confiem na Evergrande e no governo”, disse Huang Ge, alto funcionário da área de habitação de Changsha, a um grupo de fornecedores em uma reunião em novembro, segundo atas analisadas pelo “FT”. “Vamos superar essas dificuldades juntos e vocês terão uma perda menor ou mesmo um pequeno lucro.”
Um executivo de uma empreiteira contratada pela Evergrande para obras em Suzhou, uma cidade rica no delta do rio Yangtze, perto de Xangai, diz que sua empresa tem rejeitado apelos semelhantes de governos locais para retomar o trabalho, a não ser que receba o pagamento antecipadamente. A empreiteira, a Suzhou Gold Mantis Construction Decoration, entrou com processo contra a Evergrande por falta de pagamentos no valor total de 645 milhões de yuans.
“Também passamos a cobrar preços mais altos por nossos serviços por causa da inflação”, acrescentou o executivo. “Não houve muito avanço porque a Evergrande e as autoridades locais enfrentam escassez de recursos. Mas não vamos mais financiar projetos da Evergrande porque também estamos sob forte stress financeiro.”
Em Shaoyang, outra cidade de Hunan, as autoridades tentam se livrar dos problemas da Evergrande por meio de leilões. Em 24 de dezembro, anunciaram a venda dos quatro projetos locais da incorporadora. “Nem o governo nem a Evergrande têm dinheiro. Alguém precisa preencher o vazio”, disse uma autoridade local.
Efeito cascata. A crise de endividamento no setor imobiliário da China também repercute por toda a economia via os veículos especiais de financiamento fora dos balanços que foram usados por empreiteiras para escapar dos limites de endividamento do setor impostos pelas agências reguladoras no verão de 2020. É um exemplo clássico de como para cada ação regulatória do governo central na China costuma haver uma reação a partir do mercado que ajuda as empresas visadas a contorná-la.
Em resposta aos limites “máximos” de alavancagem para o setor, as 20 maiores incorporadoras do país emitiram “commercial papers” (títulos de dívida de curto prazo) no total de 336 bilhões de yuans em 2020, quase 40% a mais do que em 2019, de acordo com a Bolsa de Commercial Papers de Xangai.
Na China é comum que as incorporadoras obriguem seus fornecedores a aceitar esses títulos - que prometem saldar em uma data futura - em vez de pagamentos em dinheiro. O fornecedor pode usar esses títulos para fazer seus pagamentos, desde que os endosse com um carimbo da empresa no verso do documento. Mas se a Evergrande não conseguir pagar o commercial paper no vencimento, seu detentor pode processá-la e a todas as outras empresas que o endossaram - e assim possivelmente congelar ativos que valem muitas vezes mais que a dívida original.
Em carta aberta à Evergrande, o dono de um escritório de arquitetura na província de Shandong, no leste da China, descreveu o “golpe devastador” que a inadimplência da incorporadora significava para empresas como a dele, que tinham endossado seus commercial papers.
“Um commercial paper de 10 milhões de yuans frequentemente é endossado dez vezes antes de ficar com seu detentor final”, escreveu Li Menghe. “O titular pode então congelar 10 milhões de yuans de cada uma das dez empresas que o endossaram, [ou] 100 milhões de yuans no total... Na maioria os endossantes são empresas de construção que, por causa da covid, precisam de liquidez mais do que nunca. O fracasso da Evergrande em quitar os commercial papers deixa inúmeras empresas à beira da falência.” Li e sua empresa, a Qingdao Wanhe Construction and Decoration, não responderam a pedidos de comentários.
Em 2020, a quantia total dos commercial papers emitidos por empresas chinesas atingiu 3,6 trilhões de yuans - o equivalente a 3,5% do Produto Interno Bruto (PIB). Só a Evergrande foi responsável por mais de 60% das emissões das 20 maiores incorporadoras imobiliárias.
Wang Qiang, proprietário de uma empreiteira contratada pela Evergrande em Zhengzhou, capital da província central de Henan, disse que pequenas empresas como a sua não têm escolha a não ser aceitarem os commercial papers das grandes incorporadoras. Agora o futuro de sua empresa depende de ele conseguir receber os 7,5 milhões de yuans que a Evergrande lhe deve, mas Wang é apenas um de muitos credores em uma fila muito longa. Todos os processos de credores contra a Evergrande devem ser julgados por um tribunal da cidade de Guangzhou, no sul do país, onde já existe um acúmulo de 367 casos com pedidos de indenização que somam 84 bilhões de yuans.
“Como pequenos fornecedores, ou aceitamos os commercial papers [das incorporadoras] ou não conseguimos contratos”, diz Wang. “A Evergrande desencadeou uma reação em cadeia. Podemos aguentar por mais alguns meses, mas não muito mais do que isso.” (Colaborou Xinning Liu, de Pequim - Tradução de Mario Zamarian, Rachel Warzawski e Lilian Carmona).