VALOR ECONÔMICO, n 5418, dias 15,16 e 17 de Janeiro de 2022, Brasil, A4
Brasil e o risco de ‘tempestade perfeita’
Anaïs Fernandes e Victor Rezende
Um pouso menos suave que o previsto da política monetária nos Estados Unidos é um risco que poderia criar uma “tempestade perfeita”, de viés negativo, para o Brasil, aponta o economista-chefe da Gávea Investimentos, Eduardo Zilberman. Isso porque o potencial aperto das condições financeiras globais ao longo de 2022, além de pressionar o câmbio e os prêmios de risco por aqui, se juntaria às incertezas que rondam o período eleitoral, observa.
Nessa situação e em um mundo com juro real alto, diz o economista, não seria possível descartar a possibilidade de dominância fiscal no Brasil, isto é, uma situação em que elevações nos juros seriam contraproducentes para baixar a inflação e apenas agravariam a trajetória prevista para as contas públicas. “No auge dessa incerteza eleitoral, você pode ter plataformas populistas sinalizando mais gastos e crescimento, que, interagindo com juro real muito alto e prêmios de risco elevados, levariam ao questionamento sobre se será possível honrar essa dívida”, afirma.
Em dominância fiscal, não tem autonomia para o BC; a política monetária já não serviria para controlar a inflação”.
Embora pondere que esse seria um “cenário-limite”, o economista, que também é professor da PUC-Rio, explica que, em um quadro de dominância fiscal, nem mesmo a autonomia do Banco Central, aprovada no ano passado, daria conta de minimizar esses riscos. “Em um regime de dominância fiscal, não tem autonomia possível para o BC. A política monetária já não serviria para controlar a inflação”, aponta Zilberman, que assumiu, há cerca de nove meses, a posição de economista-chefe na gestora criada pelo ex-presidente do BC Arminio Fraga. A seguir os principais trechos da entrevista.
Valor: A Gávea cobre mais de 20 países. Qual é a perspectiva para a economia brasileira em 2022 diante da de outros pares?
Eduardo Zilberman: O Brasil está mal. Se você olhar uma variável que tem um poder bastante explicativo em relação à atividade, que é a incerteza, tem uma incerteza no país que parece já contratada, sobre o período eleitoral e sobre qual será o novo arcabouço fiscal que vai vigorar após as eleições. Isso, de alguma maneira, afeta a demanda doméstica. O Brasil está, do ponto de vista de crescimento, um pouco pior que seus pares. Trabalhamos com certa estabilidade do PIB brasileiro em 2022, entre zero e 0,5%, por causa dessa incerteza.
Valor: O que poderia fazer esse número ser maior ou menor?
Zilberman: O risco para mais ou para menos depende, basicamente, de fatores externos, de como a economia chinesa vai evoluir, a demanda por commodities, as chuvas e como isso vai afetar a agricultura.
O grande risco é uma inflação rodando em 10% [ao fim de 2021] reativar aquela inércia toda que existia no passado.
Valor: A nova onda da covid-19, com a variante ômicron, turva perspectivas mais positivas para esses fatores externos, pensando, por exemplo, no crescimento chinês?
Zilberman: Certamente tem algum efeito, mas o que a gente vê é que as pessoas têm aprendido a conviver com o vírus. E, pelo menos do ponto de vista global, o que essas variantes parecem fazer é postergar um perfil de crescimento. Elas restringem capacidade de oferta, de consumo, mas isso gera uma poupança acumulada que vai ser gasta lá na frente. A maneira como eu tenho pensado esses novos surtos é deslocando o crescimento alguns trimestres à frente, no caso da economia global.
Valor: Ainda sobre o cenário externo, recentemente, com a publicação da ata da reunião de dezembro, vimos uma postura mais agressiva do banco central americano. Isso também torna o cenário global mais desafiador?
Zilberman: De fato, observamos o Fed [Federal Reserve] mais agressivo naquilo que se propõe a fazer de política monetária. A razão para isso é que a tese de que a inflação seria transitória está cada vez mais perdendo força. Os números, de leitura em leitura, não cedem, a inflação lá [nos Estados Unidos] está rodando a 7%. Existe um medo de que essa inflação passe a bater na espiral salário-preço, e o Fed, que antes estava reagindo aos dados correntes, está tomando uma postura mais antecipatória. Ele se mostra cada vez mais intencionado em apertar os juros. À medida que você consegue fazer um pouso suave, no sentido de retirar a quantidade de estímulo monetário necessária para frear a inflação sem afetar o crescimento, a tendência é que isso bata de alguma maneira nas condições financeiras, com reflexos, sim, para a economia global.
Valor: Com qual cenário de alta de juros nos EUA e redução do balanço do Fed vocês trabalham?
Zilberman: Se você comparar em relação ao último ciclo [de aperto monetário], eles estão procurando fazer uma redução do balanço mais rápida. Mas a gente tem pouco conhecimento de como é essa tradução da redução do balanço, em termos de aperto das condições financeiras, vis-à-vis a elevação da taxa de juros. Ainda tem muita coisa para rolar. O mercado está convergindo para um cenário de quatro altas nas taxas de juros neste ano, e, aí, é uma discussão em aberto sobre como eles vão encaixar a redução do balanço. O “trade-off” básico é o seguinte: ter a oportunidade de começar a reduzir o balanço agora e não o fazer aumenta a probabilidade, em uma eventual recessão lá na frente, de ter de expandir ainda mais o balanço partindo de um patamar já alto; por outro lado, se você não pega essa oportunidade de agora de começar um aumento da taxa de juros, se vier uma recessão adiante, a chance de bater no “zero lower bound” [o limite inferior da taxa de juros] aumenta.
Valor: Esse duplo movimento do Fed, de aumento de juros e redução do balanço, não pode pesar excessivamente sobre a atividade nos EUA e, assim, sobre a economia global?
Zilberman: Isso certamente é um risco. A maneira como eu acho que o Fed está lidando com essa possibilidade é através de uma comunicação articulada entre todos os membros do passo a passo adotado e testando as condições de mercado conforme isso vai sendo comunicado. Parece que estão buscando implementar esse processo comunicando com antecipação e de uma maneira muito cuidadosa. Um grande risco a esse cenário é se a inflação acelerar ainda mais, eles perderem essa janela de tempo para comunicar e tiverem de partir para uma ação mais rápida.
Valor: Como isso poderia se refletir no Brasil?
Zilberman: Naturalmente, aumenta o risco de a Selic ter de terminar em um patamar superior. Mas o Brasil também já tinha começado esse ciclo [de aperto monetário] antes, então, parte desse processo já se antecipou. O que acontece é que o aperto substancial das condições financeiras é um risco mais para o meio de 2022 e, aí, podemos cair em uma “tempestade perfeita”, em que se soma o período eleitoral incerto [no Brasil], questionamentos sobre as plataformas de governo e pressões sobre o câmbio e prêmios de risco, por causa do aperto das condições financeiras na economia americana.
Valor: E quais poderiam ser as consequências dessa “tempestade perfeita” para o país?
Zilberman: Nesse mundo com juro real [o juro que desconta o efeito da inflação] alto, acho que não daria para descartar a possibilidade de dominância fiscal. Nesse regime, os detentores da dívida [pública] já não acreditam que o país será capaz de gerar sequências de superávit para honrar essa dívida. Então, eles trocam dívida do governo por ativos externos ou mesmo bens. Isso gera uma inflação corretiva no montante da dívida nominal. No auge dessa incerteza eleitoral, você pode ter plataformas populistas sinalizando mais gastos e crescimento, que, interagindo com juro real muito alto e prêmios de risco elevados, levariam ao questionamento sobre se será possível honrar essa dívida, entrando no regime de dominância. Mas é muito importante enfatizar que esse é um cenário-limite.
Valor: Qual é a expectativa que vocês têm para o debate fiscal durante e após a eleição presidencial?
Zilberman: Eu acho que a racionalidade política exigiria do candidato que ganhasse estruturar algumas reformas para conter o fiscal e poder, do ponto de vista puramente político, colher os frutos lá na frente. O candidato que não se propuser a fazer isso vai rumar para um cenário macro muito ruim, com câmbio e prêmio de risco altos. Talvez seja uma hipótese forte exigir essa racionalidade, mas eu consigo enxergar a lógica do argumento de que alguma coisa terá de ser feita porque será do interesse do próprio governante eleito.
Valor: A autonomia do Banco Central, aprovada no ano passado, não poderia ajudar a mitigar os riscos de que uma “tempestade perfeita” ocorra?
Zilberman: Em um regime de dominância fiscal, não tem autonomia possível para o Banco Central. A política monetária já não serviria para controlar a inflação, ela vira uma função puramente do fiscal. O corolário disso aqui é que a autonomia do Banco Central pressupõe um compromisso do governo com a estabilidade fiscal.
Valor: Em um ambiente funcional neste ano, qual é sua perspectiva para a política monetária?
Zilberman: Acho que um plano de voo razoável seria mais um aumento de 150 bps [pontos-base, ou 1,5 ponto percentual] da Selic em fevereiro, depois mais 100 bps em março e teria uma folga na reunião de maio para decidir a taxa terminal - se vai ser 12,25%, 12% -, e, aí, entraria em compasso de espera para ver como as eleições e a incerteza evoluem, como a inflação se comporta dali em diante.
Valor: Existe algum viés para essa estimativa de Selic?
Zilberman: Vai depender muito dos números de inflação no curto prazo, nos próximos três, quatro meses. Se a inflação voltar a surpreender para cima, acho que vai ser mais para 12,25%. Se surpreender para baixo, vai estar mais para 11,75%.
Valor: A inflação de dezembro, que avançou 0,73%, ante expectativa mediana do mercado de 0,65%, assustou de alguma forma?
Zilberman: Acho que o IPCA de dezembro mostrou uma inflação disseminada por um lado, mas, por outro, as surpresas foram concentradas em dois itens - vestuário e perfume. Então, acho que o plano de voo [da política monetária] não deveria mudar tanto por causa desse número de dezembro.
Valor: Qual é o seu cenário para a inflação em 2022?
Zilberman: Vemos o IPCA chegando a 5,2% neste ano, mesmo com essa quantidade de juro real. O grande risco é uma inflação rodando em 10% [ao fim de 2021] reativar aquela inércia toda que existia no passado, principalmente no setor de serviços. Você precisa manter a taxa de juros real alta para desarmar essa inércia.
Valor: Vocês projetam um PIB perto da estabilidade e, mesmo com a ociosidade ainda elevada da economia, a estimativa de IPCA está acima do teto da banda da meta, que é de 5%...
Zilberman: Se o hiato do produto [medida para a ociosidade da economia] estivesse fechado, essa inflação seria ainda mais alta do que esses 5,2%. O hiato aberto certamente contribui para trazer a inflação para baixo, mas temos uma situação em que, por causa da incerteza que se avizinha em 2022, também dificilmente o câmbio ajudaria. Então, para além do hiato, cabe ao BC tentar desarmar uma eventual inércia que pode estar se formando nos preços.
Valor: O BC tem sido cauteloso ao falar sobre inércia elevada…
Zilberman: Tem um desafio empírico que é: conforme a inflação vai subindo, existe um risco de a inércia aumentar; só que se você tenta capturar essa inércia com os dados pregressos em um período em que a inflação foi mais baixa, isso, de alguma maneira, não se materializa nas estimativas. Eu acho que, em um país com a tradição do Brasil, com a inflação rodando a 10%, as condições estão propícias para ativar esses mecanismos que geram a inércia. O que a gente fez na Gávea foi buscar uma especificação empírica, olhando vários pontos no tempo para checar se, de fato, esses períodos de inflação alta estavam associados a inércia maior e chegamos à conclusão de que estavam. Parte do desafio do Banco Central é não deixar essa inércia se entranhar na economia brasileira, porque, aí, o custo de política monetária para trazer a inflação de volta à meta nos próximos anos será muito maior.
Valor: Como avalia a atuação do BC nessa e em outras tarefas ao longo da pandemia?
Zilberman: Em um mundo em que as coisas estão mudando muito rápido, é difícil fazer uma avaliação. Se olhar a perspectiva desde o início da pandemia, no primeiro momento a interpretação foi que ela seria um choque deflacionário, então, você viu redução da taxa de juros ao redor do mundo. No segundo momento, a interpretação mudou e ela passou a ser mais inflacionária, e os bancos centrais começaram a reagir, alguns antes, outros depois. O BC no Brasil foi um dos primeiros, e em um ambiente em que você não tinha claro até onde levar a taxa de juros para pesar essas duas forças, o aspecto deflacionário e o inflacionário.
Valor: Mas a comunicação do BC recebeu críticas…
Zilberman: Parte do desafio é entender o valor da comunicação em um mundo em que a macroeconomia está surpreendendo sistematicamente, porque, bem ou mal, uma comunicação muito proativa implica um “guidance” [orientação] de mercado que vai ter de ser revisto por causa dessas surpresas. Se você não estiver no limite inferior da sua taxa de juros, precisando estimular “no gogó”, ou se você não quer reancorar as expectativas na marra, talvez a prescrição de política adequada seja evitar uma comunicação muito proativa. O mercado pode confundir a comunicação como comprometimento de uma política futura que você [BC] provavelmente não vai entregar porque o mundo está em constante mudança.
Valor: Não há risco de o BC “exagerar” na dose de juros e arrastar a atividade para baixo, provocando o chamado “overkill”?
Zilberman: É crucial para o crescimento ter um arcabouço macro bem organizado e, para isso, você precisa de uma inflação previsível e estável. A minha visão é que o Banco Central, ao garantir uma inflação sempre na meta, estará contribuindo para a atividade. Essa questão da atividade é sobre, talvez, ter uma situação em que você [BC] demore um pouco em convergir a inflação à meta para mitigar os efeitos sobre a atividade. Eu acho que, dado que o IPCA está rodando a 10%, considerando esse risco inercial todo e também o de bater nas expectativas [de inflação], nos salários, nos preços, a prioridade, agora, deveria ser trazer a inflação de volta à meta.
Valor: Vê espaço para ocorrer alguma redução da taxa Selic ainda neste ano?
Zilberman: Corte de juros, se for o caso, seria mais para o fim de 2022, em 2023, mas vai depender do comportamento da inflação, que pode ceder se os gargalos de oferta melhorarem, se essa quantidade de aperto monetário que o BC vem introduzindo já começar a ter algum efeito no fim do ano. Vai depender muito de como a inflação vai se comportar até o fim do ano. Nosso IPCA de 5,2% supõe uma Selic parada.
Valor: Parte relevante da inflação no Brasil em 2021 é explicada pelos gargalos nas cadeias produtivas globais. Há perspectiva de normalização neste ano ou novas variantes do coronavírus e posturas como a da China diante da pandemia podem postergar isso?
Zilberman: Esses gargalos, por um lado, são reflexo da pandemia, com menos pessoas trabalhando. Essa política de “covid zero” da China potencializaria esses gargalos. Por outro lado, eles também são fruto de um excesso de demanda por causa da quantidade de estímulos que houve no mundo desenvolvido. No fim da linha, o quão duradouros serão esses gargalos de oferta depende desses dois fatores, mas a gente sempre tem que levar em consideração a capacidade de adaptação da economia.