VALOR ECONÔMICO, n 5418, dias 15,16 e 17 de Janeiro de 2022, Brasil, A8
Desigualdade regional é desafio na vacinação
Gabriel Vasconcelos e Denis Kuck
A campanha de vacinação contra a covid-19 no Brasil completa hoje um ano, justamente no primeiro dia de imunização massiva de crianças. Na sexta, foi vacinada contra o vírus, em São Paulo, a primeira criança do país, um indígena Xavante de 8 anos. Doze capitais começam nesta segunda-feira a vacinar crianças entre 5 e 11 anos. Especialistas ouvidos pelo Valor dizem que a proteção das 20 milhões de crianças nesta faixa etária aumenta a chance de se alcançar a imunidade coletiva, o que reduziria a circulação do vírus no país. Outro desafio urgente, afirmam os cientistas, é reduzir as desigualdades regionais da vacinação de adultos e adolescentes.
Estudo publicado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no fim de dezembro, mostrou que as cidades com os menores índices de desenvolvimento humano (IDH), concentradas no Norte e interior do Nordeste têm, em média, percentual de vacinados 20% inferior ao das cidades mais desenvolvidas, situadas na maior partes das vezes no Sul e Sudeste. O atraso dá espaço a surtos como o da variante ômicron e deixa os sistemas de saúde vulneráveis.
“Apenas 16% dos municípios têm mais de 80% da população com cobertura vacinal completa", diz o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão. Na visão dele, o número nacional de dois terços de pessoas imunizadas escamoteia índices baixíssimos em cidades pobres do país. De acordo com os especialistas, a discrepância está ligada à falta de coordenação do governo federal sobre a campanha de imunização, em boa medida a cargo de prefeitos e governadores.
Ao fazer um balanço de um ano de vacinação, médicos e pesquisadores debruçados sobre as estatísticas da covid-19 avaliam que a capilaridade do Sistema Único de Saúde (SUS), com milhares de pontos de vacinação ora reforçados, e a cultura de vacinação do país prevaleceram sobre as dificuldades impostas pelo governo. Na prática, a postura do Planalto se traduziu em demora na compra de vacinas pelo Ministério da Saúde, que teve três ministros na pandemia, e no boicote sistemático à vacinação pelo presidente da República, que até hoje afirma não ter se vacinado.
O resultado foi mais de 621 mil mortes por covid-19 desde março de 2020, muitas das quais poderiam ter sido evitadas, dizem médicos, se a vacinação tivesse começado antes. Com os imunizantes, o número de mortes no Brasil teve um pico em março de 2021, na segunda onda da pandemia, momento em que países com histórico de vacinação menor que o Brasil, como o Canadá, avançavam na proteção de idosos e o Ministério da Saúde não conseguia dar escala à vacinação brasileira. Só naquele mês, mais de 55,5 mil idosos morreram por covid-19 no país.
O pesquisador da Fiocruz Diego Xavier, um dos coordenadores da plataforma MonitoraCovid-19, que reúne indicadores da pandemia e da vacinação no país, diz que a vacinação “decolou” a partir do fim de abril quando as entregas do imunizante de Oxford/AstraZeneca pela Fiocruz se estabilizaram acima das 5 milhões de doses por semana e se somaram às remessas de Coronavac envasadas pelo Instituto Butantan.
“Quando as doses começaram a chegar em maior número e regularidade, a vacinação avançou rápido e logo superou as taxas de países que dispunham da vacina há mais tempo, como Estados Unidos e alguns europeus", afirma Xavier. “Chegamos rápido a mais de 60% da população duplamente vacinada e há alguns meses avançamos pouco porque esbarramos entre os que não querem ou não têm informação sobre a vacina. A melhor maneira de ampliar a vacinação é com as crianças”, afirma
“A atuação do governo federal é criminosa. Não há outro termo. O governo joga contra a vacinação, governa para o vírus e para a militância bolsonarista antivacina desde o início da crise”, critica o médico sanitarista e pediatra Daniel Becker, do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que, nos últimos meses, apelou pela vacinação das crianças a tempo da volta às aulas, em fevereiro.
No último episódio do cabo de guerra contra a ciência, o Ministério da Saúde postergou o aval à imunização desse público, e alegou necessidade de consulta pública para aprovar a medida. Foi duramente criticado pela comunidade científica uma vez que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) havia dado a permissão para vacinar crianças há 30 dias.
Os malfeitos do governo contra a vacinação são citados por todos os especialistas ouvidos pela reportagem. A lista é longa e inclui a recorrente difamação da vacina e recomendação de tratamento experimental inócuo (cloroquina e ivermectina) por parte do presidente Jair Bolsonaro. Passa ainda por atritos diplomáticos com a China, maior produtora do Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA) de das duas vacinas mais aplicadas no país, e as sucessivas negativas de técnicos do Ministério da Saúde à abertura de negociação com executivos da farmacêutica Pfizer, à época, estratégica para a diversificação do portfólio de imunizantes e a segurança da campanha. Os fatores somados levaram à abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da covid-19, que pediu o indiciamento pela Justiça de 78 pessoas e duas empresas, incluindo Jair Bolsonaro.
Mesmo assim a vacinação avançou. Até ontem 342 milhões de doses de vacinas contra a covid-19 tinham sido aplicadas no país. Segundo números do consórcio de imprensa feito para acompanhar a evolução do coronavírus no Brasil, 68% de toda a população - o que inclui crianças - têm esquema vacinal completo (duas doses ou dose única da Janssen). O número corresponde a 146,6 milhões de pessoas. Incluindo os vacinados com uma dose, a marca vai a 75% dos brasileiros, ou 162 milhões. Os imunizados com doses de reforço somavam ontem 33,9 milhões.
“Temos um número expressivo de pessoas vacinadas, que demonstra a disposição da população em se imunizar, apesar de todo o negacionismo e ‘fake news’ que a gente tem acompanhado, inclusive do próprio governo”, diz a epidemiologista Carla Domingues, ex-coordenadora do Programa Nacional de Imunização (PNI).
Vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Reinaldo Guimarães, diz que o Ministério da Saúde acertou em ter como espinha dorsal do PNI as vacinas da AstraZeneca e a Coronavac, mas errou ao demorar em firmar contratos com outros fabricantes, o que atrasou o início da campanha. “Se formos olhar o copo meio cheio, temos dois terços da população com cobertura completa. Não fosse isso, teríamos situação muito complicada agora com a alta transmissibilidade de ômicron. Por outro lado, o copo meio vazio diz que temos pouco mais de 30% de ainda não vacinados ou que receberam apenas uma dose.”
Temporão concorda que os números são modestos diante da experiência do PNI. “Mas, se considerarmos que temos um presidente que lidera movimento antivacina, foi vitória. Os brasileiros responderam que acreditam na ciência.”