O GLOBO, n 32.344, 25/02/2022. Mundo, p. 15

ROLO COMPRESSOR RUSSO

André Duchiade


TROPAS DE PUTIN CONVERGEM SOBRE A UCRÂNIA DE TRÊS LADOS E ACUAM PAÍS

Desde a madrugada de ontem, as forças da Ucrânia resistem à maior ofensiva militar de um Estado contra outro na Europa depois da Segunda Guerra, enfrentando uma invasão russa em grande escala que acuou o país da Europa Oriental. Mísseis choveram sobre alvos em diversas cidades, espalhando morte e destruição, enquanto tropas e blindados invadiam de diversas direções, levando milhares de pessoas à fuga e a comunidade internacional à indignação.

As forças invasoras estão organizadas em três eixos diferentes, e duas delas dirigem-se à capital, Kiev, disseram autoridades do Departamento de Defesa dos Estados Unidos. O ataque confirmou os piores temores do Ocidente, onde há semanas vinha-se alertando para sua iminência.

Segundo o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, ao menos 137 pessoas morreram e 316 ficaram feridas no primeiro dia de operações, e a ONU afirmou que cerca de 100 mil pessoas foram forçadas a deixar suas casas.

CHERNOBYL FOI TOMADA

As duas linhas rumo a Kiev partem da Bielorrússia, no Norte, e da Crimeia, no Sul, usando mísseis e artilharia de longo alcance, e tem o provável objetivo de destituir o governo de Zelensky, acrescentou um porta-voz do Pentágono, que pediu anonimato. A terceira linha se concentra no Leste ucraniano, perto da fronteira.

Segundo um porta-voz das Forças Armadas ucranianas, o objetivo da Rússia nesta primeira etapa é “bloquear e criar um corredor terrestre para a península anexada da Crimeia e a Transnístria”, uma região separatista da Moldávia próxima a Odessa, no Sul.

O Ministério do Interior ucraniano informou às 21h de Kiev (16h no Brasil) que registrou 393 ataques da Rússia contra posições suas ontem. Segundo o Exército russo, 74 instalações de infraestrutura militar ucraniana foram destruídas, incluindo 11 pistas de decolagem. O Ministério da Defesa disse que o objetivo das 12 primeiras horas da ofensiva “foi atingido”.

A área próxima à usina nuclear de Chernobyl, que registrou o pior acidente atômico já ocorrido no mundo em 1986, foi capturada pelas forças russas “após uma batalha feroz”, disse Mykhailo Podolyak, assessor do gabinete presidencial ucraniano. Vídeos postados na internet mostram veículos militares circulando pela zona de exclusão radioativa.

— É impossível dizer que a usina nuclear de Chernobyl está segura após um ataque totalmente inútil dos russos — disse. —Esta é uma das ameaças mais sérias na Europa hoje.

As forças russas até agora têm atacado instalações militares ucranianas e alvos de defesa aérea, usando mais de 160 mísseis balísticos de médio e curto alcance, segundo o Ministério de Defesa americano. Um dos objetivos era desabilitar o sistema de defesa aérea do país. A Rússia também usou mísseis lançados do mar de navios de guerra no Mar Negro, disseram as autoridades do Departamento de Defesa. Até agora, a Rússia não atacou o Oeste da Ucrânia.

UCRANIANOS REVIDAM

Autoridades de defesa disseram que as forças ucranianas estão revidando, com os combates mais pesados em um cerco a Kharkiv, a cidade grande mais próxima da Rússia, no Leste da Ucrânia.

A ofensiva russa mais perto de Kiev se concentra sobre o aeroporto de Gostomel ou Antonov, no Noroeste da capital. Após ser tomado por forças russas, houve um revide ucraniano e, à noite, a batalha ainda estava em curso. O aeroporto é considerado estratégico, pois sua pista de pouso poderia possibilitar o envio de tropas e armamentos para o lado russo.

Na operação para capturar o aeroporto, helicópteros chegaram por volta das 11h locais (6h no Brasil) da Bielorrússia, roçando os telhados das casas e causando pânico a caminho da capital. Segundo testemunhas, no ataque russo, soldados desceram de helicópteros com cordas disparando metralhadoras.

— Havia pessoas sentadas nos helicópteros, com as portas abertas, sobrevoando nossas casas — disse Sergui Storojouk do lado de fora do aeroporto, pegando suas malas de viagem e fugindo da área. — Os helicópteros chegaram e os combates começaram. Dispararam com metralhadoras e lança-granadas.

As explosões na capital começaram desde antes do amanhecer e, várias vezes ao dia, sirenes soaram no porto da cidade e a rodovia para fora de Kiev ficou congestionada com o tráfego, enquanto os moradores fugiam. Houve relatos de uma coluna de fumaça subindo perto da sede da Inteligência do Ministério da Defesa.

O prefeito de Kiev decretou toque de recolher das 22h às 7h na cidade, e o Ministério do Interior pediu que a medida seja respeitada. As forças ucranianas na região de Donbass, onde ficam as duas autoproclamadas repúblicas separatistas pró-Moscou de Donetsk e Luhansk, têm conseguido resistir ao avanço russo, mas as forças de Moscou tentam isolá-las.

Segundo Tatiana Stanovaya, pesquisadora do Centro Carnegie de Moscou, “a missão não é dividir a Ucrânia, mas controlá-la completamente. Isso provavelmente se deve à intenção de interromper a conexão com a fronteira no Oeste para que não haja fornecimentos para guerrilheiros. Isso aumenta drasticamente os riscos para toda a operação”.

Ao anunciar pela TV russa que ordenou o ataque à Ucrânia, Putin fez ameaças aos EUA e à Otan:

— Quem tentar interferir, ou ainda mais, criar ameaças para o nosso país e nosso povo, deve saber que a resposta da Rússia será imediata e levará a consequências como nunca antes experimentado na História —disse.

‘GUERRA DE AGRESSÃO’

O presidente Zelensky disse que o objetivo de Putin, é destruir o Estado ucraniano.

“Putin acaba de lançar uma invasão em grande escala na Ucrânia. Cidades pacíficas ucranianas estão sob ataque”, disse o chanceler ucraniano, Dmytro Kuleba, no Twitter. “Isso é uma guerra de agressão. A Ucrânia vai se defender e vencer. O mundo pode e deve parar Putin. O momento para agir é agora”, disse.

Com 44 milhões de pessoas com mais de mil anos de história, a Ucrânia é um país democrático e com a maior área territorial na Europa depois da própria Rússia. Após a queda da União Soviética em 1991, a população do país votou esmagadoramente pela independência, e as pretensões do país de se juntar à Otan e à União Europeia enfurecem Moscou.

Putin, que negava planejar uma invasão, disse em discurso na segunda que a Ucrânia surgiu como “resultado da política bolchevique (...) [e] ainda hoje pode, com razão, ser chamada de ‘Ucrânia de Vladimir Ilyich Lenin’”, uma caracterização que os ucranianos chamam de chocante e falsa.