O GLOBO, n 32.344, 25/02/2022. Mundo, p. 18

AS BOMBAS PREVISTAS

Yan Boechat


UCRANIANOS ESPERAVAM CONFLITO

O som das primeiras bombas chegou antes do amanhecer de ontem. Distantes, mas altas o bastante para nos acordar num hotel com cheiro de Guerra Fria na pequena cidade de Slaviansk. Estamos a 40 quilômetros da fronteira entre a Ucrânia e as autoproclamadas repúblicas separatistas de Donetsk e Luhansk. Logo as notícias começaram a chegar. Bombas em Kharkiv, Mariupol, Kiev e Kramatorsk. E logo mais duas explosões. Ainda distantes.

Fui dormir preparado para partir. Todo vestido, passaportes, dinheiro, celular. Tudo em meu corpo. Malas prontas. Desde as 18h os rumores de que o ataque aconteceria nessa noite foram crescendo a cada minuto. Às 21h uma colega israelense me ligou. “Vai ser hoje, saia, estamos saindo de Mariupol agora”. Um outro colega me liga. “O que vai fazer? Estamos recebendo informações desencontradas, ‘Wall Street Journal’ já saiu”.

Logo os telefones de todos os jornalistas no hotel dessa pequena cidade no Leste ucraniano começaram a tocar. Discussões, conselhos, recomendações. Estávamos todos numa situação em que já estivemos tantas vezes: ficar e cobrir a história acontecer pondo nossa vida em risco ou partir e colocar a segurança em primeiro lugar?

Decidimos ficar enquanto os rumores eram apenas rumores. Partir quando as bombas começassem a cair. Ainda conseguimos encontrar uma lanchonete aberta no meio da noite, comemos e nos preparamos para uma noite longa.

Foi uma noite tranquila. O céu estava limpo e a temperatura agradável. Apenas o gigantesco gerador de uma fábrica fazia de hora em hora sons semelhantes aos de aviões sobrevoando. Com a manhã se aproximando, tudo indicava que os rumores eram, como tantos outros, rumores.

VIERAM AS BOMBAS

Mas então vieram as bombas. E tudo mudou. A guerra tão esperada, tão anunciada, chegará. O sol logo nasceu e as ruas de Slaviansk começaram a ganhar vida. Com um passado de tantas guerras e vivendo tão perto de um conflito que já deixou mais de 15 mil mortos, as pessoas aqui sabem o que fazer quando as bombas chegam.

Filas começaram a se formar nas primeiras horas da manhã. Primeiro, nos bancos. Depois, nas farmácias. Por último, nos supermercados.

— Dinheiro, remédio, comida e água — me contou Igor, um jovem morador de Slaviansk que acompanhava a mãe em uma das imensas filas nos caixas eletrônicos e bancos. — Não sabemos quantos dias teremos que passar num porão ou num abrigo antiaéreo se as coisas piorarem.

Apesar do medo e da incerteza, não havia pânico nas ruas de Slaviansk. Filas em ordem, poucas reclamações na longa espera. Era como se todos aqui estivessem acostumados a viver a possibilidade de serem invadidos por uma força estrangeira.

NAÇÃO MAIS AMPLA

Mas aqui, ao contrário de boa parte do Oeste do país, muita gente acha que Putin não está exatamente errado em pressionar Kiev. Essa é uma região da Ucrânia em que a maior parte da população fala russo, tem famílias no outro lado da fronteira e se considera integrante de uma nação mais ampla que não reconhece as fronteiras políticas.

Para muita gente nessa região, Vladimir Putin seria incapaz de bombardear a população civil.

— Seria um grande erro dele, somos todos da mesma nação, não acredito que isso vai acontecer — me disse Alexei há dois dias em Kharkiv, a segunda maior cidade ucraniana e distante apenas 30 quilômetros da fronteira russa.

Logo após as 7h, as bombas pararam de cair. Desde então, há silêncio. Nas ruas de Slaviansk, todos buscam comprar seus mantimentos, tirar dinheiro, preparar-se para dias difíceis. Tudo feito em silêncio, como se esse fosse só mais um período ruim, que logo há de passar.