O GLOBO, n 32.348, 01/03/2022. Saúde, p. 19
USO MEDICINAL
Melissa Duarte
Canabidiol está sendo testado no tratamento de ao menos 20 doenças
De depressão a epilepsia, esclerose múltipla, dor crônica, fobia a cólica menstrual —nunca a ciência avançou tanto nas descobertas das propriedades medicinais da cannabis, a planta da maconha. Estima-se que os efeitos do canabidiol, substância encontrada em pequeno volume no caule e na folha da erva, estejam sendo testados em pelo menos vinte doenças em grandes centros de referência ao redor do mundo. Um dos trabalhos mais extraordinários é brasileiro. Pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), em Ribeirão Preto, identificaram a ação terapêutica do composto no burnout, a síndrome do esgotamento profissional.
Publicado na revista JAMA, da Associação Médica Americana, o trabalho avaliou 120 profissionais da saúde da linha de frente da resposta à Covid-19. Doses diárias de 300 mg do medicamento reduziram sintomas de fadiga emocional em 25% nos voluntários, depressão em 50% e ansiedade em 60%.
Pois agora o grupo de cientistas estuda a ação do canabidiol na própria Covid-19.
— Estamos avaliando, em parceria com o Instituto de Psiquiatria da USP, o efeito do canabidiol na prevenção das consequências neurológicas e médicas gerais da infecção por coronavírus —diz o líder da pesquisa, o psiquiatra José Alexandre Crippa.
Os cientistas descobriram que ácidos do canabidiol têm a capacidade de se ligar à proteína Spike, a estrutura que o coronavírus usa para entrar nas células. Com isso, os compostos de cannabis poderiam evitar a infecção. O trabalho, publicado no Journal of Natural Products, foi desenvolvido em laboratório e ainda precisa passar por novas etapas, como testes em seres humanos.
— Existe um enorme potencial terapêutico levantado por estudos pré-clínicos. As pesquisas em laboratório levantam a possibilidade de essas substâncias, em especial o canabidiol, terem um leque amplo de potencialidades terapêuticas. É necessário um volume maior de ensaios clínicos para poder dizer que esses efeitos realmente existem — explica o professor de Farmacologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP Francisco Guimarães.
AVANÇO DA FLEXIBILIZAÇÃO
No Brasil são 14 remédios autorizados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) — três deles validados há apenas uma semana. Eles só podem ser usados com a receita médica do tipo B (azul), a mesma usada com psicotrópicos.
O número de produtos, no entanto, pode aumentar nas próximas semanas. Dados da Anvisa mostram que há cinco pedidos em análise de produtos e quatro em exigência. Outros três ainda devem começar a ser avaliados.
— Vejo, a médio prazo, a fundamental necessidade de os ensaios clínicos demonstrarem a eficácia e a segurança para diferentes condições. O canabidiol não é uma bala de prata, uma panaceia. Ele precisa ser indicado para cada uma das condições com dosagem adequada que apenas os ensaios clínicos podem trazer —afirma Crippa.
Procurado pelo GLOBO, o Ministério da Saúde afirmou que “no momento, não há solicitação em aberto para avaliação do canabidiol” na Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec)” — órgão técnico responsável por incluir novas terapias, medicamentos e tratamentos na rede pública.
O canabidiol só deixou a lista de substâncias proibidas pela Anvisa e passou a ser autorizado como medicamento controlado em janeiro de 2015. A aprovação do primeiro medicamento veio em 2017. Usar o composto é completamente diferente de consumir a droga.
— Quando uma pessoa usa um preparado a partir da planta, usa uma mistura de cerca de 500 compostos químicos —diz Guimarães.
Na sua forma natural, a maconha é uma das drogas menos viciantes. Nos últimos dez anos, porém, a erva passou a ser manipulada de modo a conter uma quantidade maior de THC, o composto que dá o “barato”, passando de menos de 1% nos anos 1960 para 30 vezes mais hoje. Tida como inofensiva por muitos, a maconha pode ser devastadora para adolescentes. Estudo canadense, mostrou que o uso aumenta diretamente o risco de desenvolvimento de psicose e interfere no desenvolvimento do cérebro.