O GLOBO, n 32.348, 01/03/2022. Mundo, p. 18

Clima põe 40% da população do planeta em alta vulnerabilidade

Rafael Garcia


IPCC avalia que 3,5 bilhões têm opções limitadas em eventos extremos

O grupo de especialistas recrutado pela ONU para avaliar a ciência sobre o clima divulgou ontem um novo relatório destacando o tamanho da população sob risco com o aquecimento global. “Entre 3,3 bilhões e 3,6 bilhões de pessoas vivem em contextos que são altamente vulneráveis à mudança climática ”, diz o documento do IPCC( Painel Intergovernamental Sobre Mudança Climática ).

Essa cifra, baseada em uma revisão científica conduzida por 270 especialistas, está no relatório do grupo de trabalho 2 do painel, que, além de impactos e vulnerabilidades, trata da adaptação a estes. Ele é um subcomponente do AR6 (6º Relatório de Avaliação), o principal documento do painel, parte de uma série que se renova a cada sete anos, aproximadamente. Os impactos descritos como problemas ligados à interferência humana no clima no documento, incluem problemas como secas, inundações, fome e doenças.

O relatório avalia o nível de risco em diferentes cenários futuros de emissão de gases estufa, e mesmo no mais otimista deles (elevação da temperatura média global em 1,5°C até o fim do século, meta do Acordo de Paris para o clima), lista uma série de consequências irreversíveis.

ÁGUA COMO PONTO FRACO

Apresentado em uma entrevista coletiva, o trabalho saiu acompanhado de um discurso duro do secretário-geral da ONU, António Guterres.

— O relatório de hoje do IPCC é um atlas do sofrimento humano e um indiciamento por fracasso na liderança climática. —afirmou. —Quase metade da Humanidade está vivendo na zona de perigo agora. Muitos ecossistemas estão num caminho sem volta, agora. A poluição desenfreada por carbono empurra os mais vulneráveis do mundo em uma marcha forçada para a destruição, agora. Os fatos são inegáveis. Essa abdicação de liderança é criminosa.

A maior parte da população sob algum risco de sofrer consequências da crise do clima, segundo o IPCC, tem na água o seu maior ponto de fraqueza. Metade da população global enfrenta crises hídricas em parte do ano, e a mudança climática já tem boa parcela de culpa nisso. Quase um terço das pessoas está em áreas vulneráveis por viverem em cidades ou habitações costeiras, onde o aumento do nível do mar é ameaça potencializada por ressacas e tempestades.

Se os oceanos subirem mais 15 cm em média, descreve o relatório, o tamanho da população sob risco cresce 20%. Se subirem 75 cm, o número de ameaçados dobra. Nesse cenário mais pessimista, o valor do patrimônio que se encontra sob risco de uma inundação até o fim do século pode chegar a US $14 trilhões.

No campo da saúde, os impactos se traduzem em um aumento nas doenças transmitidas por mosquitos ou pela exposição ao calor. O risco de fome se dá pelo impacto do clima na agricultura. O relatório também trata de biodiversidade, e reporta que metade dos seres vivos mapeados por biólogos está se deslocando para áreas mais frias, como montanhas e altas latitudes, em busca de clima melhor.

Desde que foi criado, em 1988, o IPCC tem adotado uma postura mais “descritiva” e menos “prescritiva” para problemas e soluções. Para cada relatório que publica, o painel produz um “Sumário para formuladores de políticas". Cabe a autoridades de governo negociar formas de frear e remediar o aquecimento global em outro foro da ONU, a Convenção do Clima.

No atual documento, porém, o IPCC aponta muitas situações em que deixar de investir em adaptação não é mais opção a ser debatida, porque são inevitáveis.

—Nós nos preocupamos em não sermos prescritivos, mas ao mesmo tempo somos cidadãos do planeta —diz o climatologista Hans-Otto Pörtner, colíder do grupo 2 do I PCC .— Até podemos parecer prescritivos quando falamos da urgência do tema, mas no fim das contas o que fazemos é reiterar conclusões que saem das leis da natureza, porque a natureza reage à poluição que emitimos para a atmosfera.

O AR6 é bem mais detalhado por região do que o AR5, publicado em 2014. No tomo do grupo 2, há capítulos especiais para áreas mais críticas na mudança climática, incluindo pequenas ilhas, regiões polares, áreas montanhosas e florestas tropicais. Houve, por exemplo, um avanço em reconhecer que capacidade da Amazônia de reter carbono no chão está se reduzindo, pelo desmatamento e pela própria mudança climática.

—Este relatório incluiu agora, com alta confiança, que a parte sul da Amazônia se tornou uma fonte líquida de carbono para a atmosfera na última década —afirma Jean Ometto, pesquisador do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) e coautor do documento.

PETRÓPOLIS E AS MUDANÇAS

O Brasil também aparece no relatório como particularmente vulnerável a impactos na agricultura, que sustenta boa parte da sua economia. Extremos de estiagem, lista o IPCC, se alternam no Brasil com extremos de chuva. O novo relatório do painel cita mais dos chamados" estudos de atribuição ", que buscam estimar quanto da mudança climática influencia eventos extremos.

— Não é uma coisa trivial atribuir um evento específico, como as chuvas que ocorreram em Petrópolis, à mudança do clima. Mas já é possível dizer com mais certeza que uma maior “frequência” desses eventos extremos está associada à mudança do clima — explica Ometto.