VALOR ECONÔMICO, n 5420, 19/01/2022, Brasil, A4 

Apesar de veto ao Rio, acordo é viável, dizem especialistas 

Cristian Klein, Marta Watanabe e Gabriel Vasconcelos 
 

Apesar de ter sinalizado com a possibilidade de judicialização, o governador do Rio, Cláudio Castro, vai buscar reverter hoje em Brasília, em reunião com o ministro da Economia, Paulo Guedes, o veto do governo federal à entrada do Estado do Rio no novo Regime de Recuperação Fiscal (RRF). A decisão, que se baseou em pareceres do Tesouro Nacional e da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), é alvo de divergência entre especialistas consultados pelo Valor e reforça a ideia de que há espaço para negociação. 

Os dois órgãos federais apontaram que o plano apresentado pelo Rio para aderir ao RRF teria “premissas técnicas frágeis” e seria insuficiente para “promover o equilíbrio financeiro sustentado” do Estado. O Rio tem dívida de R$ 176 bilhões com a União e o ingresso no novo regime, por dez anos, depende de contrapartidas que as autoridades federais exigem para tornar as condições de pagamento mais favoráveis ao Estado. 

Um dos pontos centrais reprovado pela Secretaria do Tesouro é a previsão do Palácio Guanabara de dar reajustes anuais aos servidores públicos fluminenses até 2030. Especialista da FGV Direito Rio, a professora Bianca Xavier afirma que o plano do Rio não se refere a um aumento real mas a uma recomposição salarial, com recuperação de perdas diante da inflação nos últimos anos, o que não seria vedado pela Lei Complementar 159/2017, que instituiu o Regime de Recuperação Fiscal dos Estados e do Distrito Federal. 

Caso o assunto seja judicializado no Supremo Tribunal Federal (STF), o prognóstico “é extremamente favorável ao Rio”, diz Bianca, lembrando decisões que beneficiaram outros Estados, como Goiás. “A lei diz que não pode dar aumento salarial, ainda mais em ano eleitoral. Mas aí concordo com o Estado do Rio porque não está aumentando, mas sim fazendo uma recomposição, como se fosse uma atualização salarial”, afirma. 

Para o professor da FGV Istvan Kasznar, diretor do Programa de Estudos dos Estados e Municípios (PEEM/Ebape), “muitas medidas não foram adotadas” pelo Rio no sentido de equilibrar suas contas ou denotam “lentidão nos processos de mudança”. Em sua opinião, para além do RRF, o Estado precisa de uma completa reestruturação administrativa e de um plano para reerguer a economia fluminense, de modo sustentado. O que o governo federal fez, diz Kasznar, foi acender o “sinal laranja”, mas que, a médio e longo prazos, haverá acordo. “O que pode salvar esse acordo agora, aparentemente, é a origem do presidente Bolsonaro, que tem sua base no Rio de Janeiro, e do ministro Paulo Guedes. E vão, obviamente, apertar os parafusos”, diz. 

Também carioca, o ex-ministro do STF Marco Aurélio Mello diz que “a judicialização é sempre possível” mas evita a condescendência. “A viúva, a União, socorre os Estados considerados parâmetros. É preciso que o Estado honre compromissos. Ante o que li hoje [ontem], mesmo tendo o aporte da privatização da Cedae, não o fez. Mamar nas tetas da União não vale. A política econômica-financeira há de ser austera, sob pena de retorno de inflação desenfreada, prejudicando os cidadãos em geral. Impõe-se a responsabilidade do administrador. Este não pode ‘cumprimentar’ com o chapéu alheio”, escreveu ao Valor. 

Um ex-secretário da Fazenda do Rio que não quis se identificar critica o reajuste a servidores públicos estaduais, que define como “absurdo”, às vésperas do envio do plano. “Parte do problema que o Rio apresentou em 2015 e 2016 [antes da primeira adesão ao RRF, em 2017] foi o excesso de aumentos salariais ao funcionalismo, que criou uma despesa estrutural crescente então paga com as receitas instáveis dos royalties e participações especiais do petróleo. É um erro que se repete agora”, diz o ex-secretário. 

Outro problema antigo para o qual o governo não teria apresentado solução é o passivo de restos a pagar, que, diz a fonte, são historicamente postergados pelos governos fluminenses, que ainda exigem descontos para executar pagamentos. “Ora, se o fornecedor sabe que isso vai acontecer, ele já embute isso no preço inicial. Assim, o Estado não contrata em boas condições, o que pesa na despesa”, diz. Para o ex-secretário, agora que as arrecadações de petróleo vivem boa fase, era hora de pagar restos a pagar e reduzir o estoque de dívidas. 

As críticas se voltam, por último, à falta de uma “carteira de investimentos estruturantes”, capazes de aumentar a arrecadação de forma orgânica nos próximos anos. 

Especialistas ouvidos apontam, ainda, que o Rio não pagou ao Tesouro os R$ 4,8 bilhões relativos à sua dívida honrada pela União com o banco BNP Paribas, mesmo após a licitação dos serviços da Cedae à iniciativa privada, que renderam mais de R$ 18 bilhões em outorga ao Palácio Guanabara. “É difícil negociar com o Tesouro quando não se faz por onde para ter a confiança dos técnicos”, pontua o ex-secretário da Fazenda. 

Para Manoel Pires, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), a Secretaria do Tesouro Nacional e o Rio precisam voltar a negociar um plano de recuperação que viabilize a volta do Estado ao RRF e evite soluções pelo Judiciário. “Para o Rio é ruim não entrar no plano porque ele não tem condições de pagar a dívida e para o Tesouro é ruim criar um ambiente de federalismo em que todo mundo pode recorrer ao Judiciário. Isso destrói o sistema que está sendo construído”, diz. 

Pires afirma que é preciso reconhecer esforços realizados pelo Estado nos últimos quatro a cinco anos. No último ano, lembra, houve aprovação das reformas previdenciária e administrativa para atender aos requisitos no novo RRF. E como há várias categorias sem reajuste salarial desde 2015, diz ele, a despesa de pessoal com ativos caiu. De acordo com o governo fluminense, esse gasto com ativos caiu de R$ 23,4 bilhões em 2017 para R$ 19,6 bilhões em 2020. 

Para Pires, houve divergência de expectativas entre Tesouro e o Estado do Rio em relação às medidas do plano. Uma delas, diz, está relacionada aos reajustes de salários. “Mas seria pouco crível um plano de recuperação para dez anos que não preveja reajuste quando não se deu aumento desde 2014. Talvez não seja razoável prever reajuste em todos os anos, mas não ter nenhum reajuste é irrealista.” 

Outra questão divergente são as medidas de ajuste de receita, consideradas pouco críveis. O Rio, avalia Pires, tem nível de arrecadação tributária baixo para a receita per capita do Estado. Para ele, é possível aumentar as alternativas de arrecadação de maneira que dê confiança ao Tesouro de que o Estado conseguirá sair do plano mais reestruturado. O governo fluminense, diz, precisa mostrar o que defendeu ou mudar sua estratégia. De qualquer forma, as portas para a negociação, diz, não podem ser fechadas. “