O GLOBO, n 32.349, 02/03/2022. Economia, p. 10
Saída de empresas já afeta o cotidiano dos russos e isola o país
Apple suspende venda de iPhones, Visa e Mastercard restringem operações com cartão em ação inédita de repúdio de companhias
Ao longo de duas décadas com o presidente Vladimir Putin, os russos colheram os frutos do capitalismo e da globalização: voos baratos, hipotecas acessíveis, itens tecnológicos importados e automóveis. Desde segunda-feira, as vantagens da vida moderna começaram a desaparecer abruptamente, como resultado das sanções econômicas impostas ao país após a invasão da Ucrânia pela Rússia. Em uma ação de repúdio inédita no ambiente corporativo, empresas dos mais variados setores, dos grandes negócios aos pequenos serviços, decidiram parar de operar no país ou suspender vendas, atentas aos desdobramentos do conflito.
A mais recente empresa a se juntar ao bloco de repúdio foi a Apple, que anunciou a suspensão de vendas de iPhones e outros produtos na Rússia. “Estamos profundamente preocupados com a invasão da Ucrânia pela Rússia e estamos ao lado de todas as pessoas que estão sofrendo como resultado da violência”, disse a empresa ontem. “Apoiamos esforços humanitários, fornecendo ajuda para a crise de refugiados em curso e fazendo tudo o que podemos para apoiar nossas equipes na região”.
SEM APPLE PAY NO METRÔ
Os aplicativos de canais russos como RT News e Sputnik News já não estão disponíveis para download na App Store fora da Rússia. A Apple Pay limitou serviços no país e também desabilitou dados de tráfego em mapas da Ucrânia, a mesma iniciativa adotada pelo Google, com a preocupação de assegurar que as informações não poderiam ser usadas no conflito, em um momento que a ação das big techs está no radar dos reguladores.
A debandada em massa de negócios começou com as petroleiras. Nos últimos dias, BP, Shell e Equinor já tinham anunciado a suspensão de atividades. Ontem, a petroleira francesa TotalEnergies, que detém fatia de 19,4% na Novatek, a maior produtora russa de gás natural liquefeito, disse que “não vai mais disponibilizar capital para novos projetos na Rússia”. Não encerrou atividades como as concorrentes, mas não colocará dinheiro novo no país. “A TotalEnergies apoia a amplitude e a força das sanções estabelecidas pela Europa e vai implementá-las apesar das consequências (sendo avaliadas) em suas atividades na Rússia”, disse a companhia.
Não é apenas a indústria que sente o impacto das empresas de malas prontas. As sanções afetam o cidadão comum em pequenos detalhes do dia a dia. A Apple Pay e o Google Pay pararam de funcionar nas catracas do metrô de Moscou. Operadoras de cartão de crédito se juntaram ao repúdio coletivo. A Mastercard e a Visa bloquearam algumas atividades em seus sistemas de pagamento para se adequarem a sanções internacionais. Elas não especificaram os clientes que serão impactados, mas citam os esforços globais para isolar a Rússia do sistema financeiro diante dos ataques à Ucrânia.
“A Visa está tomando medida imediata para garantir o cumprimento de sanções anunciadas e está preparada para se adequar a outras que possam ser implementadas”, disse a empresa em nota.
A Mastercard já havia se manifestado na véspera: “Como resultado de exigências resultantes de sanções, nós bloqueamos diversas instituições financeiras de usar o sistema de pagamento da Mastercard. Nós vamos continuar a trabalhar com reguladores nos próximos dias para cumprirmos integralmente com nossas obrigações de conformidade à medida que elas evoluem”, informou.
Para Antonio Corrêa de Lacerda, professor doutor de pós-graduação em Economia pela PUC-SP e presidente do Conselho Federal de Economia, a intensidade do movimento surpreende:
— Trata-se de um bloqueio inédito, especialmente na fase pós-globalização da economia mundial, a partir dos anos 1990. Até há bem pouco, o que assistimos foi a uma crescente interconexão das transações internacionais, a despeito das disputas geopolíticas e econômicas entre os países. Temos que considerar que as sanções poderão ser temporárias, usadas como instrumento de pressão para uma eventual solução negociada.
O receio de isolamento é real. Tão logo o espaço aéreo europeu foi fechado para voos da Rússia, muitos russos correram para reservar bilhetes nos poucos voos internacionais em operação. A dimensão da deterioração da economia ainda é uma incógnita, após aumento de juros, derrocada do rublo e medidas de controle de capital. “Eu entrei em pânico”, disse a proprietária de uma pequena agência de publicidade em Moscou, Azaliya Idrisova, de 33 anos. Ela disse que planeja partir para a Argentina nos próximos dias e não estava segura se os clientes iriam conseguir pagar pelos serviços.
Além da questão de imagem que o conflito impôs, as empresas agiram em linha com a maior dificuldade para negociar com a Rússia em razão das sanções econômicas. Bancos russos foram retirados do sistema de pagamento internacional Swift e o acesso do Banco Central da Rússia a boa parte de suas reservas foi vetado. Esse quadro encorajou empresas a romperem parcerias e cancelarem dezenas de bilhões de dólares em investimentos.
NEM MESMO O BATMAN
No setor automotivo, a Harley-Davidson é a mais recente a suspender negócios e remessas de motos para o país, um movimento que já tem a adesão de General Motors e Daimler Truck Holding AG. Muito antes do conflito, em 2010, Putin foi fotografado andando em uma Harley-Davidson ao se juntar a um encontro de motociclistas na Ucrânia. A Europa é o segundo maior mercado para a empresa.
A BMW anunciou ontem a suspensão da exportação de seus carros para o país. A companhia disse esperar que a produção sofra interrupções em consequência de gargalos na cadeia de fornecedores. “Pela situação geopolítica atual, estamos descontinuando nossa produção local na Rússia e as exportações para o mercado russo”, disse a BMW em nota.
Nem mesmo o lazer será o mesmo no país após a invasão. As principais empresas de entretenimento de Hollywood, incluindo Disney e WarnerMedia, interromperam os lançamentos de filmes na Rússia. A Disney adiou a estreia de “Turning Red” (Red: Crescer é uma Fera, em português) sobre uma garota que se torna um panda gigante vermelho sempre que fica animada. O filme estreia nos EUA em 11 de março. A WarnerMedia adiou o lançamento do novo Batman, estrelado por Robert Pattinson como o super herói. A Sony suspendeu o lançamento de Morbius, um spin-off do Homem Aranha estrelado por Jared Leto.
“Trata-se de um bloqueio inédito, especialmente na fase pós-globalização da economia mundial, a partir dos anos 1990. Até há bem pouco, o que assistimos foi a uma crescente interconexão das transações internacionais, a despeito das disputas geopolíticas e econômicas entre os países”
Antonio Correia de Lacerda, presidente do Conselho Federal de Economia