O GLOBO, n 32.349, 02/03/2022. Mundo, p. 16
PAPEL CUMPRIDO, APESAR DE BOLSONARO
Janaína Figueiredo
DIPLOMATAS AVALIAM QUE ITAMARATY DEFENDE NA ONU TRADIÇÕES DA DlPLOMAClA BRASILEIRA
Diante da dissonância entre declarações do presidente Jair Bolsonaro e as posições expostas pelo Brasil no Conselho de Segurança da ONU sobre a guerra entre Rússia e Ucrânia, diplomatas ouvidos pelo GLOBO destacaram o que consideram uma “atuação correta e apegada a nossas tradições e valores expressos na Constituição” por parte do Itamaraty comandado por Carlos França, no posto há quase um ano.
As falas do chefe de Estado — solidariedade à Rússia e “neutralidade” diante da invasão, entre outras — são consideradas por alguns parte da narrativa para um público interno que causa dano à imagem externa do país. Mas hoje, diz Roberto Abdenur, ex-embaixador do Brasil em EUA, China e Alemanha, “a voz de Bolsonaro não é levada a sério mundo a fora. Trata-se de uma pessoa desmoralizada”.
—O que conta perante a comunidade internacional são os pronunciamentos oficiais do Brasil nos principais foros globais, no Conselho de Segurança e na Assembleia Geral das Nações Unidas. Bolsonaro joga para a extrema direita radical —enfatizou.
Os discursos do embaixador Ronaldo Costa Filho, representante do Brasil na ONU, deixam algumas posições do país muito claras: a defesa de princípios básicos do direito internacional como a soberania dos países e a integridade territorial; condenação ao ataque da Rússia e apelo para que as hostilidades cessem; questionamento à aplicação unilateral de sanções contra a Rússia por parte dos EUA e da União Europeia (UE), pelos riscos que esse tipo de medidas coercitivas implica para muitos países, não apenas os envolvidos na guerra; e a crítica, também, a iniciativas como o fornecimento de armas à Ucrânia que possam arrastar o mundo para uma guerra descontrolada. O Brasil teme, afirmaram fontes diplomáticas, que a ameaça de utilização de armas nucleares, lançada pelo presidente russo, Vladimir Putin, possa se tornar realidade.
EQUILÍBRIO DIFÍCIL
O Itamaraty, ressaltaram as fontes, deve encontrar um difícil equilíbrio entre preservar a relação com uma potência como a Rússia (sócia no Brics, junto com China, Índia e África do Sul), tida como um aliado estratégico e comercial importante, e, ao mesmo tempo, manter-se apegado aos pilares fundamentais da tradição diplomática brasileira. No Conselho de Segurança, os representantes do Brasil, segundo O GLOBO apurou, conversam com todos os membros. O governo brasileiro não faz, porém, como o México (também membro rotativo), articulações sobre temas específicos, como a promoção, junto com Noruega e França, de uma resolução sobre a entrada de ajuda humanitária ao território ucraniano.
Para o embaixador Marcos Azambuja, que representou o país na França e Argentina, “o Brasil está desconfortável numa situação na qual deve defender princípios, mas, ao mesmo tempo, interesses que não pode abandonar”.
— O Brasil, na votação de sexta-feira no Conselho de Segurança, tinha de prestar tributo à tradição diplomática. Mas a Rússia é um parceiro importante, e o Brasil tem de se cuidar muito para não cair no automatismo de uma nova Guerra Fria —avaliou.
Quando você tem uma guerra, aponta o embaixador Everton Vieira Vargas, ex-representante do Brasil em UE, Alemanha e Argentina, “deve ficar do lado do agredido, sobretudo num caso tão transparente como este. Isso foi dito por nosso embaixador na ONU”.
—O Brasil fez o que tinha de fazer. Por outro lado, temos uma parceria importante com a Rússia, e é preciso pensar nos interesses brasileiros. O Itamaraty busca preservar esses interesses —apontou.
‘ATUANDO DENTRO DAS LINHAS’
Na mesma linha, o embaixador Rubens Barbosa, que já chefiou embaixadas brasileiras em Washington e Londres e atualmente preside o Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice), opinou que “o Itamaraty está fazendo prevalecer a linha tradicional da Chancelaria”.
— Estamos conversando com todos. O Itamaraty está atuando dentro de suas linhas, com posição muito clara sobre questões essenciais como soberania e integridade territorial —completou Barbosa.
O Brasil, concordou o embaixador Gelson Fonseca, diretor do Centro de História e Documentação Diplomática da Fundação Alexandre de Gusmão (Funag) e conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), “está fazendo o jogo certo”.
— Estamos seguindo a melhor doutrina multilateral de nossas tradições.
Entre mortos e feridos, o Itamaraty está, salientaram os diplomatas ouvidos, conseguindo preservar uma tradição histórica e respeitada no mundo.