Valor Econômico, v. 22. n. 5420, 19/01/2022, Finanças, C3
BIS critica finanças descentralizadas e defende papel de BCs
Eulina Oliveira
O gerente-geral do Banco de Compensações Internacionais (BIS), Agustín Carstens, afirmou ver “um grande abismo” entre visão e realidade no caso das chamadas “finanças descentralizadas” (DeFi, na sigla em inglês). Em palestra durante evento ontem, promovido pelo Instituto de Lei e Finanças (ILF) da Universidade de Frankfurt, Carstens afirmou que o ambiente das DeFi tem sido “usado principalmente para atividades especulativas”, e reforçou o papel dos bancos centrais para a estabilidade e regulação dos sistemas monetários.
“Os bancos centrais têm sido e continuarão a ser as instituições melhor posicionadas para prover confiança na era digital”, disse Carstens. Ele ressaltou que “um bem público como o dinheiro precisa de supervisão tendo em mente o interesse público”.
Em sua apresentação, o diretor-geral do BIS - instituição considerada o “banco central dos bancos centrais” - afirma que os BCs conseguiram se adaptar constantemente às mudanças tecnológicas, econômicas e sociais. “É por isso que os bancos centrais estão engajados ativamente com a inovação digital, desenvolvendo infraestruturas, sistemas de pagamentos rápidos e moedas digitais.” No entanto, segundo ele, “alguns desenvolvimentos recentes podem ameaçar a essência do dinheiro como um bem público, se levados longe demais”.
Carstens traçou três cenários. O primeiro envolve as chamadas “stablecoins” (moedas digitais estáveis) de grandes empresas de tecnologia, que “competem com as moedas nacionais e contra elas próprias, fragmentando o sistema monetário”.
“As grandes empresas de tecnologia fizeram contribuições importantes para os serviços financeiros. Seus novos e inovadores produtos permitiram que centenas de milhões de novos usuários ingressassem no sistema financeiro formal”, afirmou Carstens. Segundo ele, as chamadas “big techs” também alcançaram relevância sistêmica em várias economias importantes. “Por exemplo, as grandes empresas de tecnologia fornecem 94% dos pagamentos móveis na China. Essa tendência pode acelerar se uma dessas empresas criasse um ecossistema dominante e fechado em torno de sua própria empresa global.”
Uma vez estabelecida, uma empresa provavelmente “erguerá barreiras contra novos entrantes, levando a dominância, concentração de dados e menos concorrência”, alertou. “Sua ‘stablecoin’ pode desintermediar bancos incumbentes, colocando em risco a estabilidade financeira.”
“Além disso, se uma stablecoin de grande tecnologia se firmar, outras tentarão imitá-la. Podemos acabar com alguns jardins murados dominantes competindo entre si e com moedas, fragmentando o sistema monetário nacional e global”, afirmou. “Os benefícios iniciais iriam desaparecer, dando rapidamente lugar aos conhecidos problemas de concentração de mercado.”
Além disso, Carstens afirmou que as mesmas forças econômicas que promovem a inclusão também podem causar “discriminação, violações de privacidade e concentração de mercado”.
O segundo cenário, conforme Carstens, está relacionado à “promessa ilusória” de criptomoedas e finanças descentralizadas (DeFi), de oferecer “um sistema financeiro livre de poderosos intermediários, mas que pode realmente entregar algo muito diferente”.
Carstens afirmou que os entusiastas da DeFi mantêm algumas promessas muito atraentes, como a “democratização das finanças”, deixando de fora grandes bancos e outros intermediários. “A descentralização pode ser um objetivo nobre, mas esse princípio não é o que os aplicativos DeFi estão entregando. Na prática, há muita centralização no DeFi.” Além disso, afirmou, os usuários investem, emprestam e negociam ativos criptográficos em um ambiente amplamente não regulamentado.
De acordo com o executivo, os economistas do BIS discutiram essa “ilusão de descentralização” em pesquisas recentes. “A confiança em um sistema anônimo é mantida por validadores de interesse próprio. Assim, o sistema deve gerar taxas, ou aluguéis, suficientes para fornecer a esses validadores o incentivo certo.”
Esses aluguéis também são uma razão pela qual as plataformas DeFi têm sido tão atraentes para investimento de capital de risco, ponderou. “Em última análise, isso significa altos custos para os usuários. Assim, enquanto os ‘insiders’ geralmente obtêm retornos espetaculares, os ganhos de eficiência para usuários médios não se materializaram até agora. E na ausência de regulamentações, as fraudes e os hackeamentos se tornam desenfreados”, disse. “É por isso que muitos sistemas DLT [tecnologia de registros distribuídos] só podem lidar com um pequeno volume de transações até o momento e muitas vezes sofrem de congestionamento de rede. Esta é a razão pela qual o bitcoin requer tanta eletricidade.”
O terceiro cenário, prosseguiu Carstens, contempla a visão de um “sistema monetário e financeiro aberto e global que aproveita a tecnologia para o benefício de todos”. Nesse cenário, “incumbentes, grandes empresas de tecnologia e novos entrantes competem em um mercado aberto que garante a interoperabilidade”.
No centro desse sistema estão os bancos centrais, afirmou Carstens. “Eles não visam lucros, mas servir a sociedade. Eles não têm interesse comercial em dados pessoais. Eles atuam como operadores, supervisores e catalisadores nos mercados de pagamentos, e regulam e supervisionam os provedores privados.”
O executivo citou ainda as moedas digitais desenvolvidas por bancos centrais, as CBDCs. Ao contrário das stablecoins, as CBDCs não precisam emprestar sua credibilidade, afirmou. “Como são emitidos diretamente pelo banco central, elas herdam a confiança que o público já deposita em sua moeda. Podem, assim, servir como base sólida para a inovação futura”, acrescentou.
“Vamos inovar de forma sólida e sustentável, aproveitando os benefícios da tecnologia digital de maneira consistente com nossos valores compartilhados”, disse. “Os serviços e a inovação do setor privado são essenciais e devem prosperar. Mas a confiança nunca pode ser terceirizada ou automatizada”, concluiu.