O GLOBO, n 32.351, 04/03/2022. Economia, p. 13

A sombra do calote que paira sobre os mercados



A grande dúvida entre os investidores que detêm ativos russos hoje é: será que algum dia verão seu dinheiro?

O fato é que, até agora, o governo russo não parou de pagar os juros de sua dívida. Mas, com a guerra na Ucrânia e as sanções inéditas de Estados Unidos e União Europeia, que bloquearam as reservas internacionais do país, não está claro como —ou quando —os credores poderão acessar esses recursos.

A Rússia tem US$ 630 bilhões em reservas internacionais, mas as sanções impedem sua movimentação.

O Banco Central russo argumenta que o impedimento de transferir recursos aos credores de sua dívida é temporário. Mas o derretimento dos ativos russos nos últimos dias tem sido tão intenso que, ainda que as sanções sejam revistas logo, há dúvidas se ainda haveria algo a receber —e se a Rússia teria incentivos para honrar o serviço de sua dívida.

Para analistas, a Rússia está à beira do primeiro calote oficial de sua dívida externa desde 1998, quando sofreu o efeito dominó da crise asiática de 1997 e deixou de pagar um vencimento de US$ 40 bilhões. Em 1999, a crise chegou à América Latina e derrubou o Brasil.

—A guerra na Ucrânia mudou tudo —resume Guido Chamorro, codiretor de dívida de mercados emergentes na gestora Pictet Asset Management.

O próximo pagamento de cupom (juros da dívida) devido por Moscou é em 16 de março. Mas gigantes como as petrolíferas Rosneft e Gazprom têm vencimentos nos próximos dias.

No início de fevereiro, investidores tinham quase 3 trilhões de rublos (US$ 30 bilhões) de títulos russos locais, conhecidos como OFZs.

Sem um anúncio oficial do governo, pode levar semanas antes que investidores ou agências de risco possam dizer com certeza se houve ou não um calote. A maior parte dos títulos têm um período de tolerância de 30 dias.

Analistas, advogados e investidores ouvidos pela Bloomberg dizem não saber se o caso da Rússia — quando o pagamento é feito, mas os credores não acessam o dinheiro porque este está em contas bloqueadas —constitui um calote. Alguns especulam que as agências podem usar o termo calote técnico. —Um default éum default, não importa se é calote técnico ou oficial, é default se o credor não é pago —avalia Edwin Gutierrez, chefe de dívida soberana emergente no ABRDN de Londres.

Uma saída seria a Rússia usar seus ativos em yuan a partir do sistema chinês de pagamentos transnacionais, dizem analistas do Australia & New Zealand Banking Group. A Rússia tem US$ 140 bilhões em títulos chineses.