O GLOBO, n 32.353, 06/03/2022. Brasil, p. 12
Pós-resgate: a volta à vida após anos de exploração
Renata Mariz
Isolamento, idade avançada e laços afetivos criados com famílias dificultam reinserção social de muitas das domésticas que foram mantidas em situação análoga à da escravidão; ‘são vidas anuladas’, resume especialista
Tão desafiador quanto tirar as empregadas domésticas da situação análoga à de escravidão é o pós-resgate: fazer com que retomem as rédeas de suas vidas. O perfil das vítimas, pessoas de idade mais avançada que passaram quase que toda a sua existência no entorno de uma família com a qual desenvolveram laços de afetividade, dificulta a reinserção social. A lógica da servidão desse tipo tem sutilezas. Uma dela séo isolamento social como forma de aprisionar, sem que seja necessário manter vigilantes armados ou cadeados nos portões, a exemplo de expedientes usados na escravidão contemporânea em fazendas.
No trabalho escravo doméstico, geralmente as vítimas foram desencorajadas a estudar e até repreendidas quanto a fazer amizades ou manter contatos com parentes. As saídas da casa em que trabalham se restringem a mercados e padarias próximas. O enredo se repete com frequência nos casos analisados pelo GLOBO. A auditora-fiscal do trabalho Liane Durão de Carvalho, coordenadora do combate ao trabalho escravo na Bahia, resume a situação de forma enfática:
—São vidas que foram anuladas. Elas não têm amigos, nunca namoraram. Viveram para cuidar daquela casa e das pessoas. Isso acaba sendo muito conveniente porque, dessa forma, teoricamente, não precisam de férias, de descanso semanal —diz Carvalho.
ELOS COM O ALGOZ
Quando resgatadas, não é incomum que queiram permanecer no local da exploração, explica Luiz Henrique Ramos Lopes, coordenador-geral de fiscalização do trabalho do Ministério do Trabalho e da Previdência Social:
—Essas vítimas têm uma relação de confiança com o explorador importante. Por ignorância ou por interiorizarem o discurso de que estão sendo ajudadas, não percebem que são exploradas. Para ser caracterizado como trabalho análogo à escravidão, é preciso que ao menos um elemento disposto na legislação esteja presente: jornada exaustiva, restrição de liberdade, trabalho forçado ou condições degradantes. Isso combinado a critérios dispostos em instrução normativa. Alheias às questões técnicas, as resgatadas do trabalho doméstico se veem diante de um mundo desconhecido e sem perspectivas, explica Admar Fontes Junior, coordenador do núcleo de enfrentamento ao tráfico de pessoas e ao trabalho escravo do governo da Bahia.
—É o pós-resgate mais complexo em que eu já atuei em 12 anos de trabalho. São senhoras que viveram 30, 40, 50 anos naquela casa, sentem saudade daquelas pessoas. Qual o sonho delas? O que querem na vida? Não há resposta —afirma.
Coordenadora nacional das ações de erradicação do trabalho escravo do Ministério Público do Trabalho, a procuradora Lys Sobral Cardoso defende uma articulação melhor da rede de apoio estatal para acompanhar as resgatadas.
— A gente não tem casa de acolhimento minimamente organizada em cada estado. Em alguns casos, a vítima acaba indo para a Casa da Mulher Brasileira, que tem foco em violência doméstica. O pós-resgate é o gargalo de política pública no país —diz Lys.
Lys também ressalta a necessidade de a Justiça ser mais célere, já que é comum os empregadores não pagarem as verbas pela via administrativa. As condenações criminais por submeter alguém a trabalho análogo à escravidão são “pouquíssimas”, diz. Em geral, os casos não vão adiante na esfera penal, mas isso não atrapalha o andamento do processo referente aos direitos trabalhistas e à indenização por dano que geralmente é pedida.